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Vila Cardílio à espera de melhores dias

Património arqueológico de Torres Novas meio abandonado

A Câmara de Torres Novas não se consegue entender com o Instituto Português de Arquelogia (IPA) sobre o que fazer em Vila Cardílio. Enquanto isso não acontece o espaço ganha erva e há um agricultor que por ali continua a semear e colher. Há mais de vinte anos que não há escavações. As paredes da recepção, construída há uma década, servem de pista aos caracóis. A memória da presença romana na zona merecia mais atenção.

A placa de fundo castanho, indicativa de ponto de interesse turístico, está bem visível para quem sai da A23 em Torres Novas. “Vila Cardílio”, diz, apontando para uma estrada actualmente em obras de beneficiação. E o turista lança-se na aventura de descobrir um património que terá sido construído no século I da nossa era. Lançar-se na aventura é mesmo o termo porque durante todo o percurso de dois a três quilómetros mais nenhuma placa se vislumbra, apesar dos entroncamentos que aparecem pelo caminho. Não é de estranhar que já tenha havido turistas perdidos na zona industrial da cidade, à procura quiçá de um legado histórico enterrado algures entre o património industrial da região.O truque para encontrar as ruínas romanas de Vila Cardílio é simples – seguir sempre em frente, mesmo que o automóvel comece a queixar-se do mau estado da estrada e os seus ocupantes se sintam incomodados com o cheiro intenso que emana da ETAR que purifica as impurezas dos habitantes da cidade. No final de uma razoável recta, do lado esquerdo, aparece finalmente um parque de estacionamento de terra batida, enfeitado com oliveiras e delimitado por dois canteiros de relva aparada. Em frente, uma placa enferrujada indica que se está no local certo.Um portão verde, com pouco mais de meio metro de altura, está aberto de par em par, levando o visitante a um corredor coberto por uma clarabóia de vidro, parte central de uma pequena construção que funciona de um lado como recepção (centro de interpretação?) e de outro como uma sala multifunções, albergando ainda os sanitários.Uma construção com uma dezena de anos a precisar urgentemente de uma boa limpeza, ou talvez de um uso mais frequente, uma vez que dá a sensação de não ser grandemente utilizada. Há caracóis nas paredes em quantidade suficiente para fazer um farto petisco, algumas teias de aranha e janelas a precisarem de limpa vidros.À direita de quem passa o portão, um visitante menos consciencioso escreveu a tinta azul – “Clinton, you are a bad dog”. Nem os romanos escapam ao anti-americanismo. Mesmo no centro do pequeno corredor uma placa gasta, de fundo azul indefinido, indica “visitas guiadas” com uma seta para a direita. A tabuleta, amparada por uns pés de ferro seguros com uma pedra, parece também ter já visto melhores dias. Há um pedaço partido, preso com um simples clipe.Até àquela altura não se tinha visto vivalma. O suposto guia aparece então, vindo de um pequeno contentor situado uns metros acima, dentro do perímetro das ruínas.Entra-se na sala de recepção onde alguns placardes mostram fotos dos achados arqueológicos encontrados em Vila Cardílio - que podem ser visitados no museu da cidade - relatam como foram descobertas as ruínas e mostram também outros pontos de interesse na região, como as grutas de Lapas e o museu de etnografia e arqueologia industrial. Há também uma maqueta que dá a conhecer como seria a vila no século I.A verdadeira desilusão aparece quando se sai novamente para céu aberto e se depara com as ruínas. “É só isto?”. É primeira pergunta que se forma de imediato no cérebro, apesar de a boca se recusar a fazê-la, talvez por uma questão de cortesia para quem guarda aquele património.A erva cresce por todo o lado – “foi agora queimada, demora uns 15 dias a desaparecer”, refere o guia encarregue da manutenção do espaço, funcionário da Câmara de Torres Novas.Dois montes de pedras estão logo em primeiro plano, resquícios das escavações que o Instituto Português de Arqueologia(IPA) iniciou e que estão paradas há mais de duas décadas.Segundo foi apurado, desde meados da década de 80 não há trabalhos de escavações em Vila Cardílio, para desespero da autarquia. “Há projectos para continuar as escavações em 2003, se o IPA concordar”, referiu à nossa reportagem o vice-presidente da autarquia torrejana.Pedro Ferreira admite que o espaço poderia estar muito melhor aproveitado, quer em termos de equipamentos complementares quer relativamente às próprias ruínas mas “a autarquia não tem meios financeiros disponíveis” para realizar grandes melhoramentos.Mesmo que os tivesse, diz o vice-presidente, “não podemos fazer o que nos apetece num edifício classificado”, já que a responsabilidade daquele património é repartida entre a câmara e o IPA, tendo sempre este a última palavra.Palavras são mesmo o que tem faltado para que o espaço ganhe vida. Pedro Ferreira admite que o diálogo entre a autarquia e o instituto “já teve melhores dias”, depois de, entre 1997 e o ano passado, ter havido diversas “discussões académicas” sobre o projecto de um passadiço para visitantes.“Depois do projecto estar feito, o IPA voltou atrás afirmando estar a estudar novas técnicas para o local, de modo a evitar o contacto dos visitantes com as ruínas”, refere Pedro Ferreira, adiantando que a autarquia aguarda que o instituto “se pronuncie definitivamente sobre a obra do passadiço”.Até lá, os caracóis continuarão a trepar vagarosamente pelas paredes, os vidros irão ficar mais baços e a placa azul ostentará o seu pedaço partido, suportado por um simples clipe. E um agricultor da zona, que há mais de 26 anos amanha o terreno, continuará a semear o seu milho e a apanhar a azeitona nas ruínas de Vila Cardílio...Património escondido em pedreiraAntes de 1930 as ruínas romanas de Vila Cardílio eram exploradas como pedreiras pelos rurais dos arredores de Torres Novas, de onde arrancavam materiais destinados à construção das suas próprias casas, refere um trabalho de investigação do historiador torrejano Joaquim Rodrigues Bicho.Só em 1963, e depois de algumas diligências da autarquia, se procedeu à primeira escavação arqueológica, orientada por Afonso do Paço, que veio a descobrir um conjunto de alicerces, bases de coluna e pavimentos ornamentados com diversos quadros de “tesselas”, formando um edifício composto de três elementos principais – entrada, peristilo e exedra.Do espólio recolhido e exposto no museu municipal fazem parte diversos fragmentos de formas lisas e decoradas, uma ânfora, lucernas, vidros do século I ao IV da nossa era, metais, marfim, osso, mármore e, posteriormente, uma estátua de menino nu (Eros).Há mosaicos de motivos geométricos, de tranças e entrelaçados, alguns representando o quadro das aves de grupos opostos, o dos retratos dos donos da casa com motivos agrícolas e, mais famosos, o da inscrição latina “Viventes Cardilivm et Avitam Felix Turre”.Uma inscrição que tem merecido inúmeras traduções, com o segredo a permanecer inviolável até aos dias de hoje. Se admitido está que Cardílio e Avita terão vivido no século IV há construções e espólio recolhido e identificado que apontam para uma ocupação anterior, nos séculos I e II.Margarida Cabeleira

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