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A Profanização do Sagrado

Aurélio Lopes

“Os pretensos “reis magos”, astrólogos dos tempos bíblicos, vão sendo votados ao ostracismo pelos seus congéneres actuais que, na óptica estrita do interesse pessoal, vestem a pele de novas pitonisas tecendo, à laia de previsões futuras, as mais disparatadas mãos cheias de lugares comuns e oferecendo oráculos ao domicílio, devidamente personalizados e convenientemente embrulhados em papel de fantasia, como se de torradeiras eléctricas se tratasse.”

A sociedade de consumo que somos, fervilha já com os sintomas anunciadores do período natalício.É a publicidade nos média e a instalação das ornamentações de rua nas nossas cidades. É a decoração dos espaços comerciais, principalmente nas grandes superfícies, templos privilegiados de novas práticas culturais.Enquanto isso os presépios das “Nas Senhoras” e “São Josés”, “burrinhos” e “manjedouras” do imaginário cristão, vão sendo irradiados por símbolos nórdicos como renas, abetos ou trenós voadores de um alegorismo moderno.“Anjinhos de longas vestes e cabelos aos caracóis” (como diria o poeta), etéreos e andróginos, são cada vez mais substituídos por anafados e bonacheirões velhos de longas barbas, hoje em dia bem mais próximos de um imaginário popular prenhe de desejos comerciais.Os pretensos “reis magos”, astrólogos dos tempos bíblicos, vão sendo votados ao ostracismo pelos seus congéneres actuais que, na óptica estrita do interesse pessoal, vestem a pele de novas pitonisas tecendo, à laia de previsões futuras, as mais disparatadas mãos cheias de lugares comuns e oferecendo oráculos ao domicílio, devidamente personalizados e convenientemente embrulhados em papel de fantasia, como se de torradeiras eléctricas se tratasse.As dádivas propiciatórias e divinatórias ofertadas em nome do “Menino Jesus” (em substituição de dádivas semelhantes dos tempos pré-cristãos solsticiais e vegetativos) são agora substituídos por uma enxurrada de oferendas cuja ligação funcional com a divindade é hoje diáfana e indirecta.São os imperativos económicos numa sociedade em que a economia de mercado constitui, hoje em dia, a única teologia com força para impor os seus princípios mais ou menos dogmáticos.E se o Pai tinha sido já substituído pelo Filho (feito sacrifício redentor da corrupção humana) e este o vem sendo pela Mãe (num processo eclesiástico de promoção mariana ainda hoje vigente), paradoxalmente, os imperativos contemporâneos do consumo de massas têm procedido agora à substituição d’Esta (e de seu Filho) por uma outra figura paternal, algo grotesca convenhamos, mas dotada de caracteres de invulgar eficácia mediática: alegre (não austero), bonacheirão (não terrífico), prazenteiro (não mártir), prodigioso mas não omnipotente, facilmente representável e não indescritível e inominável.É a força irrevogável do marketing e do consumo. É a profanização do sagrado, feito instrumento de deuses menores!Tudo isto, curiosamente, num período que deveria comemorar a maternidade divina e, através dela, consagrar todas as outras maternidades. Maternidade de Maria que constitui arquétipo de virgindade canónica mas que, para as populações devotas, sempre foi, e sempre será, especialmente… mulher e mãe! São, não obstante, naturais evoluções de divindades feitas à imagem e semelhança do Homem. De um Homem feito à imagem e semelhança de um mundo em perpétua e inevitável mudança. Quem sabe, se de um mundo em mudança feito à imagem e semelhança de volúveis e caprichosas divindades!PS – Uma referência ao novo livro de contos de José do Carmo Francisco, “Os Guardas Redes Morrem ao Domingo”: pedaços de humanismo no mundo, muitas vezes desumano, do Desporto. De um autor (cujo percurso está ligado a O MIRANTE) que conjuga a sensibilidade do poeta, a paixão do desportista e a clarividência analítica do jornalista social.

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