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As imagens de uma festa bem portuguesa

Seis horas de tortura para ver dois palmos de festa

Milhares de pessoas são amassadas, pisadas e empurradas para ver o cortejo dos Tabuleiros

O MIRANTE vestiu no último domingo a pele de um turista que, pela primeira vez, assistiu à Festa dos Tabuleiros, em Tomar, e que pouco ou nada conhecia da cidade. É o outro lado da festa que aqui relatamos. O lado de milhares e milhares de visitantes que percorrem muitas centenas de quilómetros para ver, muitas vezes, de relance, dois ou três metros de cortejo, por entre milhares de cabeças. É ao lado de toda aquela gente anónima que se percebe o espírito de sacrifício e a paciência dos portugueses. Ufa!

Os jornais tinham avisado que Tomar estava fechada ao trânsito no domingo da Festa dos Tabuleiros e que o melhor era deixar o automóvel num dos parques de estacionamento à entrada da cidade e fazer o resto do percurso de autocarro ou de comboio. Optamos pelo comboio. Apeadeiro do Carrascal. O carro estacionado a dez quilómetros do centro das operações.Horas antes tínhamos ligado para a estação de caminhos de ferro. Para sabermos os horários tim tim por tim tim. Era tudo muito simples, mas cedo verificamos que, no terreno, não batia a bota com a perdigota. O primeiro comboio passou e nem sequer parou. “Este vai cheio”, dizia um senhor de meia-idade para mãe. “Venho eu para aqui toda maltrajada porque teimavas que tínhamos que ir neste e agora temos de ficar para aqui sabe lá mais quanto tempo e ainda por cima ao sol”, barafustava a idosa.Mais de meia-hora depois chegou outro comboio. Chegou e parou, mas foi o cabo dos trabalhos para arranjar um lugarzinho a bordo. Empurrão para aqui, cotovelada para acolá e lá seguimos que nem sardinha em lata. Um pé dentro da carruagem e outro no degrau da entrada. Vinte minutos radicais até Tomar.“Mais valia ter ficado no terrraço lá de casa a apanhar banhos de sol”, queixava-se um jovem emigrante na Alemanha a um familiar, carregando muito nos erres. A conversa era para toda a gente . Ficamos a saber notícias do progresso. “Oh, filho saíste daqui com quatro anos mas pouco ou nada mudou. Esta estação está tal e qual como há 25 anos atrás”, dizia a mãe, cabelo pintado de loiro. A vantagem de irmos amassados contra a porta é que, quando chegamos ao fim da linha, somos os primeiros a sair. Quem não conhecia a cidade ficou logo à nora. Placas indicativas dos locais de passagem do cortejo não havia. Toca a andar atrás dos outros que, com certeza, vão para lá.A tropeçar nos calcanhares dos da frente lá chegamos ao coração da festa. O relógio marcava meio-dia e o calor começava a apertar. O calor e a fome. Os farnéis começavam a sair dos sacos. É inacreditável a perícia dos portugueses em arranjar locais onde se possa pôr uma toalha de mesa e uns tupperwares. Até no separador central de uma avenida, imagine-se!O cheiro a frango e a sardinha assada andava no ar. À porta dos restaurantes e tascas havia filas de quilómetro. Em frente ao velho hospital, na berma da avenida Cândido Madureira, uma mulher vendia banquinhos de praia a 2,5 euros (500 escudos) cada. “Uma roubalheira” na opinião de um visitante que, pela manhã, os tinha apreçado a um euro. “Quando chegar a hora do cortejo devem custar mil paus”. Cinco euros, senhor, que já há dois anos que o dinheiro tem nome europeu...Do outro lado da avenida já havia uma primeira fila de pessoas sentadas nos ditos bancos. “Estão ali desde as 11 da manhã a guardar a sombra. Até lá almoçaram” contou-nos a vendedora. Em vez de seguirmos o exemplo do pessoal dos banquinhos, optámos por ir visitar a cidade. Faltavam três horas para o cortejo. Subimos a rua, entrámos no edifício do turismo para pedir um mapa da cidade e enfiamos pela primeira rua engalanada que encontrámos, ali mesmo, junto à Mata dos Sete Montes. No meio de flores e mais flores, percorremos quase toda a cidade velha. Cada rua mais bonita que a outra. Foram fotografias atrás de fotografias. A uma hora do cortejo fomos à procura de um lugarzito à maneira. Ficámos com as pernas enfiadas num arbusto, mas com vista para a avenida. Parecíamos os repórteres do National Geographic emboscados à espera dos leões. Conseguíamos ver dois metros para um lado e outros dois para o outro. Um ângulo de visão de privilegiados. Começaram a passar as raparigas com os tabuleiros à cabeça. Ali mesmo, a menos de dois metros. Nada mau.Mas não há sorte que sempre dure. Esticámos o pescoço para observar a descida dos tabuleiros pela rua e zás, levamos um valente puxão de cabelos da senhora que estava atrás. Fizemos cara de maus mas ela não se intimidou. “Ora esta. Tenha paciência mas eu não vim de tão longe para não ver nada”.Com o couro cabeludo a latejar fomos tentar a sorte mais acima, mas só quando a última banda de música entrou na avenida é que conseguimos passar para o outro lado. Seguimos a procissão de gente e demos por nós no parque de estacionamento situado nas traseiras da câmara municipal. A escassos metros, na Praça da República, os tabuleiros iriam ser benzidos, mas ainda não se vislumbrava nenhum a subir a Corredoura.Queríamos ver o Primeiro-Ministro Durão Barroso e a extensa comitiva de ministros e secretários de Estado que já deviam ter ocupado o local reservado aos VIP, mas a multidão não deixou. Voltámos a “furar” as ruas aos encontrões. Com o suor a escorrer-nos pelas costas chegámos aos Correios, em frente ao jardim do Mouchão. Ali não se estava mal, mas o cortejo só passava naquele sítio dali a três horas. Era tempo a mais para uma espera. Subimos até à ponte velha. Foi à justa. A polícia tinha começado a passar uma fita azul e branca para suster a avalanche de gente.Após vinte minutos de fura-fura, atravessámos a ponte e conseguimos chegar à Alameda 1 de Março, mas as coisas não estavam melhores por aquelas bandas, apesar das duas enormes bancadas provisórias ali colocadas, que albergavam já centenas de pessoas, a dez euros por cabeça.Depois de seis horas a deambular pela cidade, a sermos pisados, empurrados, amassados, absorvidos por um contínuo mar de gente, e com a barriga a dar horas, resolvemos pôr em execução o plano Bê. Um telefonema para uma amiga de O MIRANTE e dez minutos depois estávamos confortavelmente instalados à janela de um quinto andar na Alameda 1 de Março, com uma tigelada numa mão e uma bebida fresca na outra. Lá em baixo o cortejo multicolor serpenteava pelas ruas. E o povo desesperava para encontrar uma nesga por onde pudesse ver uns segundinhos de desfile. Um palmo ou dois de um tabuleiro. Milhares de cabeças e costas. E vivá festa! Margarida CabeleiraHolandeses reivindicam à portuguesaEm clima de festa, houve quem aproveitasse o facto de poder ser visto por milhares de pessoas para reivindicar. Um casal de holandeses, estrategicamente colocado na ponte velha, ostentava bem alto uma folha A4 com uma pergunta escrita em português – “Porquê encerrar o camping?”. À nossa reportagem afiançaram que lhes tinham comunicado que o parque de campismo ia fechar para sempre. Tentámos dizer-lhes que o encerramento era temporário, só até acabarem as obras previstas no pavilhão municipal, mas o casal não se mostrou muito convencido. “E agora, vamos para onde? Não há alternativas.”, lamentavam-se. Sempre de papel em punho.Despejar a bexiga a qualquer custoCom 700 mil pessoas (número estimado) a invadir a cidade de Tomar, a autarquia bem podia ter arranjado mais casas de banho. O calor apertava, o corpo pedia uma bebida e a bexiga é que pagava. Nas velhas e degradadas casas de banho públicas da Várzea Grande, junto à estação da CP e ao terminal dos autocarros, a fila ia aumentando. Mais abaixo, ao pé da rotunda cibernética, muitos eram os que deixavam a porta da casa de banho móvel – aquelas que mais parecem uma cabina telefónica – aberta, com medo de ficarem lá fechados. Homens encostavam-se aos automóveis e camionetas, crianças baixavam-se junto às árvores. Houve até quem optasse por outra solução e, sem pudor, tivesse feito o serviço para dentro de copos e pratos de plástico, deixados depois no vão de uma qualquer porta. Foi o desenrascanso à boa maneira portuguesa.As crianças e a festaUma boa parte dos visitantes de Tomar quiseram também trazer os seus rebentos. Era vê-los a empurrar carrinhos multicolores, tentando abrir caminho entre a multidão. “Olha a criança. Vai aqui uma criança”, dizia um pai enquanto fazia quase um cavalinho com o carro. O bebé, que teria um ano no máximo, mantinha-se calado, quieto e com os olhos bem abertos.Na estação da CP, uma mãe tentava adormecer o bebé, balançando o seu corpo suado e, a poucos metros, um casal mais prático, enfiava um pequenote num carrinho tipo mochila. Sem esquecer alguns detalhes, como o protector solar, que a mãe passava abundantemente pela face, braços e pernas da criança.O pior foi depois da festa, para entrar nos comboios. É que com tanto aperto, um carrinho incomoda sempre mais. E muitos pais optaram por esperar mais meia hora na gare para poderem ir sentados.
As imagens de uma festa bem portuguesa

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