uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

A loja que tem tudo

Um mundo de bugigangas e quinquilharias em Alcorochel

A loja “mal arrumado” é mundo à parte. Um universo colorido e caótico onde se vende de tudo. Ou de quase tudo. Porque o dono deixou de vender bebidas há uns anos por estar farto de aturar bêbados.

Chamam-lhe “mal arrumado” e percebe-se a alcunha logo que se transpõe a porta da pequena loja do Largo do Jogo da Bola, em Alcorochel. Há ferramentas de cima abaixo, em prateleiras e gavetas, penduradas no tecto ao apinhadas aos cantos. E há de tudo, de chapéus de chuva, a candeeiros, de serrotes a fogareiros a petróleo. Até se tiram fotocópias... Mas além da loja, Joaquim Brites Moita tem mais 10 armazéns cheios de materiais.É assim a loja do “mal arrumado”. Há de tudo e se não houver “quando o viajante passar talvez se arranje”. À porta, num banco corrido que já viu passar gerações sentam-se os velhos da terra, como sempre fizeram. Joaquim Brites Moita, de 76 anos, herdou o comércio do pai que antes o tinha herdado do avô. “Este balcão tem mais de 150 anos e bem mais. Aviou aqui muitos copos de vinho. Ainda tenho aqui um frigorífico, onde punha umas cervejas. Acabei com isso, cansava-me de aturar bêbados”No tempo do avô e do pai, a loja era a mercearia típica de aldeia. O feijão e o arroz misturavam-se com os nastros e as linhas e, mais ao lado, os homens ganhavam forças emborcando copos de vinho. “E já se vendiam ferramentas”, precisa Joaquim Brites Moita, mais conhecido como senhor Jaquim, a quem a alcunha do “mal arrumado” não faz qualquer mossa. “Não há tempo para tudo...”, justifica.As ferramentas de carpinteiro, pedreiro, serralheiro e de muitos outros ofícios também eram utilizadas pelos proprietários da loja, porque por trás havia uma oficina de latoaria. Um fole de consideráveis dimensões tinha um mecanismo para atear a forja. “Ainda ali está”, diz apontando para o tecto de madeira suportado por vigas grossas.Não se pense que se fica por aqui. Em divisões onde só pode entrar uma pessoa de cada vez, guardam-se jornais - “estes aqui são do meu tempo” -, livros de facturas, panfletos, almanaques e discos de 78 rotações, com uma faixa de cada lado. “Tenho uns 600 discos destes e cinco grafonolas. Uma delas, há uns anos, estava em cima do balcão e os discos ainda tocavam”. Fados de Coimbra cantados por Menano, Bettencourt, cantigas de outros tempos. “Já morreram quase todos, parece-me que só por cá anda a Milu e pouco mais”.A juntar à mercearia-taberna e à latoaria, havia uma barbearia. E conta Joaquim Brites Moita que um dia um freguês depois de ter sido atendido na loja e de ter dado “10 réis de conversa”, porque para ali não vale a pena ir com pressa, comentou: “agora vou-me embora, vou ao barbeiro”. A resposta veio pronta: “Não é preciso eu faço-lhe a barba”. “As bancadas da barbearia ainda estão para aí”. Deve ser tradição de família, ou hábitos que se foram perdendo com a sociedade de consumo em que tudo é descartável. Dantes era ao contrário, guardava-se tudo, porque se não servisse na altura serviria mais tarde. “Guarda o que não presta que acharás o que é preciso”, dizia-se. “Pois é...”, continua o sr. Jaquim.As palavras e as histórias vão saindo devagar, com a mesma calma com que atende os clientes e procura as peças entre gavetas atafulhadas, impossíveis de fechar – “era onde dantes se guardavam as mercearias, o arroz, o feijão... essas coisas” – prateleiras infindáveis ou atravessa a rua para ir a um dos armazéns: “Temos tudo o que é preciso para a agricultura, os produtos todos”. Metabissulfito e ácido tartárico para o vinho, celhas, agora já em plástico, baldes para a vindima, tesouras e molas, aspersores ou “pó para as batatas” são ali vendidos ao balcão. Os clientes que vêm de fora, porque sabem que em Alcorochel há uma loja que tem tudo, procuram outros artigos. “Às vezes querem uma fechadura antiga é por isso que tenho tantos tipos de fechaduras, sei lá o que eles querem... Hoje já atendi uns poucos de fora, vem gente de todo o lado”. O “mal-arrumado” também é posto dos CTT, recebe a água, a luz, o telefone, fornece gás e, mais recentemente, adquiriu uma fotocopiadora. “Temos uma máquina sim”. A divulgação é feita numa folha de A4 colada numa pilha de caixas de fogareiros a petróleo, daqueles de metal reluzente que fizeram a transição entre os fogões a lenha e os a electricidade ou a gás. E juntamente com os fogareiros, vende-se petróleo e espevitadores.De manhã há noite, há mais 50 anos, Joaquim Brites Moita está na sua loja. “Está aberta todos os dias, só fecho na Quinta-Feira da Ascensão porque é o feriado da terra e eu quero ir apanhar a espiga. No Natal também abro”. Ao certo, ao certo não sabe bem o que existe nos 10 armazéns cheio até à porta que tem em Alcorochel. “Sei mais ou menos, uns são de vidros, outros de outras coisas... Tenho uma colecção de moedas, muitas, estão para aí para algum canto”. Os produtos estão quase todos marcados, quando há dúvidas consulta-se a tabela, mas há muitos que estão na sua cabeça. “É assim...” Diz que está um pouco cansado, um dos filhos ajuda-o, mas é voz corrente que ele é que sabe do seu ofício, ou melhor se tem ou não o que lhe pedem: “Estou aqui há muitos anos. Fiz o curso industrial, estudei no Porto, em Coimbra... Quando andava no Instituto Comercial, em Lisboa, tinha um tio que trabalhava no Ministério do Ultramar e tinha uns amigos doutores com quem eu de vez em quando conversava. O ordenado de um doutor, na altura, era 800 escudos e eles pagavam 1.200 escudos de renda de casa. Comecei a ver aquilo, deixei de estudar e voltei para Alcorochel”.Margarida Trincão

Mais Notícias

    A carregar...