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A luta contra o preconceito

Fabíola Cardoso, dirigente do Clube Safo, ecologista, militante dos direitos humanos

Fabíola Cardoso dirige a única associação lésbica nacional, que tem sede em Santarém. Professora apaixonada pelas novas tecnologias e pela bricolage, ecologista convicta, diz que ser lésbica é apenas mais uma faceta da sua personalidade, que só merece destaque porque a sociedade ainda não encara como normal essa parte de si.

Tinha 13 anos quando se apercebeu que a sua orientação sexual não era a mesma da maioria das adolescentes da sua idade. Quando descobriu que se sentia atraída por pessoas do mesmo sexo. A partir daí foi um longo percurso, feito de determinação e de arrojo, até legalizar em 2002 a associação lésbica Clube Safo, sediada em Santarém. Fabíola Cardoso, 30 anos, fala sem complexos da sua orientação sexual, do seu percurso de militância. Do “choque” inicial que sentiram as pessoas que lhe são próximas quando decidiu contar “a verdade” sobre a sua intimidade e optou por deixar de viver com esse fardo de gerir uma vida dupla.Um fardo com que algumas mulheres ainda vivem, garante. Foi por isso que, apesar de o clube ter sido fundado em 1996, só meia dúzia de anos depois foi devidamente registado. Porque não havia quem desse a cara por ele. “Não era fácil encontrar pessoas disponíveis para associar a sua identidade, a sua morada, os seus dados pessoais, a uma associação lésbica”.A luta contra o preconceito é uma batalha diária, que garante ter dado alguns frutos. Apesar de a nível social ainda haver um longo caminho a percorrer até que a diferença seja aceite sem quaisquer dogmas. “Vivemos numa sociedade heterossexista que defende que o caminho correcto, normal, é a heterossexualidade e que rotula de desviantes, de menos correctas, outras formas de amar”.Ela escolheu um caminho diferente. Ou melhor, seguiu um caminho diferente, que lhe foi biologicamente ditado. “Não há uma opção sexual. As pessoas não acordam um dia e dizem que querem ser homossexuais ou heterossexuais. Podem é optar por assumir ou não publicamente”. Há sete anos a residir em Santarém, onde veio parar por razões profissionais, pensa em um dia mais tarde abandonar a cidade, que considera ainda um pouco fechada e conservadora. O seu sonho é ter uma casa sua, no campo mas próxima do mar. “Gostava também de ter um cão”.A sua figura franzina transborda convicção. O discurso, entrecortado por vezes por umas “passas” no cigarro, é fluido, sereno, pausado. Próprio de quem sabe o que quer e de quem está habituado a falar em público. Fabíola é professora de Biologia na Escola Secundária Sá da Bandeira. Licenciada em ensino de Biologia e Geologia pela Universidade de Aveiro, cidade onde nasceu a ideia de formar o Clube Safo. “Sou uma apaixonada pelo ensino e por tudo aquilo que os alunos me ensinam”, sustenta.A “marcenaria caseira”, uma arte que domina, ocupa-lhe algum do tempo livre. É “ecologista militante”, adepta de passeios pedestres, “ciber apaixonada”, defensora das novas tecnologias “e das possibilidades de comunicação e de aprendizagem que elas possibilitam”. Gosta de música, de cinema, de leitura, mas, apesar de estar no coração do Ribatejo, não aprecia touradas. “Ainda que correspondam a uma herança cultural respeitável tenderão cada vez mais a ser vistas como um divertimento demasiado cruel”.“Sou muitas coisas. Ser lésbica é apenas uma faceta da minha personalidade que só merece destaque porque a sociedade ainda não encara como normal essa parte de mim”, observa.É por isso que a militância lhe está no sangue. “Sou uma defensora intransigente dos direitos humanos e não apenas dos direitos das lésbicas”. Porque tem conhecimento de casos de discriminação. Porque sabe que numa sociedade onde predomina o “heterossexismo” ainda há quem olhe de lado para quem tem orientações sexuais diferentes. Fabíola Cardoso considera que ser lésbica é viver numa espécie de “guetto” cultural, num mundo sem referências que tenham em conta a sua sexualidade. Tudo é feito para heterossexuais. A TV, a literatura, a música, o cinema. Mesmo sabendo-se que muitos criadores são homossexuais. As histórias de amor envolvem sempre um homem e uma mulher. “Os gays e as lésbicas não fazem parte do imaginário que nos rodeia. Não existem à luz do dia”, lamenta.Houve alturas em que se sentiu sozinha no mundo. Portadora de uma condição que não encontrava resposta na sociedade fechada da Beira Baixa, onde cresceu após ter vindo de Angola, onde nasceu. Quando se apaixonou pela primeira vez viveu o encanto da descoberta, da revelação. Não pensava que poderia amar uma mulher e ser correspondida. “Julgava-me única no mundo”. As coisas hoje são diferentes. Graças ao espaço que essas questões têm tido na comunicação social. Fruto da acção, do espírito de iniciativa de militantes das causas gay e lésbica. Fabíola não vê os média com um meio de devassa das suas vidas, da sua intimidade, mas antes como instrumentos que podem levar a sua voz mais longe e que podem contribuir para o esclarecimento da opinião pública.“Existimos, somos pessoas como as outras e temos orgulho de termos sobrevivido a esta sociedade que nos pretende esconder, mudar, envergonhar”, afirma. Mas para isso, acrescenta, “é necessário haver gays e lésbicas a dar a cara e que passem uma imagem positiva”.João CalhazA longa marcha pela igualdade entre homossexuais e heterossexuais“Somos pessoas como as outras”Assumiu o seu lesbianismo para lutar pela igualdade de direitos entre homossexuais e heterossexuais e recusa-se a baixar a guarda. Fabíola Cardoso tem consciência que ainda há um grande caminho a percorrer e recusa os rótulos que muitas vezes são colados a quem assumiu uma orientação sexual diferente. “Essa imagem estereotipada, como a da ‘bicha’ efeminada ou da lésbica camionista, não corresponde à realidade”.Foi um desafio acrescido sediar uma associação lésbica como o Clube Safo em Santarém, cidade ainda vista como um reduto de marialvismo?O clube não nasceu em Santarém mas sim em Aveiro. Está sediado em Santarém porque algumas das pessoas que o lideram vivem aí, como é o meu caso. Como correu a implantação do Clube Safo na região?No Ribatejo não temos uma implantação muito forte, talvez devido à herança marialva e ao espírito conservador que ainda existe na região. Mas já temos algumas mulheres que são sócias e que participam que são ribatejanas, embora não seja o número que nós gostaríamos. Ainda há muita gente que tem medo de ser reconhecida como lésbica.Porquê?Porque há o risco de perderem o trabalho, de serem discriminadas. A pressão social continua a ser muito grande.Alguma vez se sentiu discriminada?Pessoalmente, não. Mas conheço muitas histórias reais de pessoas que foram despedidas, humilhadas na via pública, expulsas de casa ou pressionadas a sair devido à sua orientação sexual.Com tantas contrariedades, foi-lhe difícil assumir a sua orientação sexual junto da sua família e amigos?Foi um percurso natural assumir publicamente o meu lesbianismo. Não foi uma decisão tomada num momento só. Demorou anos, desde assumir perante mim até contar a pessoas que me eram queridas, à família, até fundar o Clube Safo. Foi um percurso de militância, político. Não se trata de uma questão privada, minha, mas que afecta os meus direitos e os de outros cidadãos.Como é que reagiram as pessoas que lhe são mais próximas?As pessoas reagem de maneira muito diversa. Se há um envolvimento emocional grande, como seja o familiar, há um choque inicial que resulta das expectativas criadas. Poucas pessoas colocam a possibilidade de ter um filho ou um familiar homossexual. Questionam o que é que aconteceu de errado. Essas pessoas precisam também de efectuar um percurso até perceberem que não houve nada de errado.Quando se fala de homossexualidade como doença, como o fazem alguns sectores da Igreja Católica, como reage?Quando quem quer que seja fala em doença, em pecado ou em perversão o sentimento que me invade é de revolta e de um certo desalento. Esse tipo de opiniões está completamente ultrapassado. Corresponde a uma recusa em aceitar a diversidade inerente à vida humana. É ridículo supor que alguém é doente por ser homossexual, ou que por isso constitui uma ameaça ou que é um elemento desestabilizador da sociedade.Essas opiniões dão-lhe ainda mais alento na luta pelos seus direitos?Os gays e lésbicas são pessoas como as outras, que merecem o mesmo respeito, o mesmo carinho, os mesmos direitos que as outras pessoas. Uma das nossas lutas, precisamente, é que no 13º artigo da Constituição da República, onde se refere que todas as pessoas são iguais independentemente da sua idade, sexo, ou religião, seja explicitada também a orientação sexual.Quando assumiu dar a cara pelo Clube Safo teve consciência da visibilidade a que estaria sujeita?A visibilidade a que me exponho e a luta que travo pretendem essencialmente isso: que um dia não seja precisa visibilidade nem luta e que ser lésbica ou gay seja encarado com tanta naturalidade como são encaradas as pessoas que têm os olhos verdes ou que fumam cachimbo. Mas até esse dia ainda há muito caminho a percorrer.Como é que lidou com a curiosidade dos média, com a exposição nas televisões?A curiosidade quer da comunicação social quer das pessoas que me rodeiam é absolutamente natural. Encaro-a numa perspectiva didáctica. Quando essa curiosidade se expressa é porque há interesse sobre o tema. É sempre preferível ao silêncio, à conversa nas costas, ao preconceito que é baseado sem conhecimento de causa.Acaba por ser uma forma de fazerem chegar a vossa voz à opinião pública.Sim. É importante que as pessoas falem deste tema e que saibam do que estão a falar. Que o encarem de uma forma aberta, positiva, normal, digamos assim.A sua notoriedade pública não lhe trouxe dissabores ou contratempos?Quem se expõe por uma causa está sujeito a uma identificação pública. E na sequência de aparições minhas mais mediáticas houve nos dias seguintes alguns comentários e algum reconhecimento público.E não é alvo de comentários menos próprios?Pelo contrário. Tem havido reacções positivas, de acharem que a minha atitude contribui para que estes assuntos seja encarados com normalidade. Mas também corro obviamente o risco de ouvir comentários menos agradáveis. Quando essas situações acontecem, o que é raro, procuro aceitá-las com algum sentido de humor e falar com as pessoas para saber o que está por detrás dessa reacção menos positiva.As comemorações do Dia do Orgulho Gay são também uma boa forma de chamar a atenção da opinião pública, apesar de haver quem ache que são demasiado ostensivas e provocatórias. Essas comemorações, que se realizam anualmente a 28 de Junho, são o momento mais alto de festa, de reivindicação política, mas também o momento mais alto de visibilidade.É um desafio aos sectores mais conservadores da sociedade?Se empregamos o termo orgulho é porque nos recusamos a ter vergonha, a ter medo e não por nos acharmos melhores que os outros. Os provocadores e exibicionistas que por lá se vêem não correspondem à realidade. As fotos que aparecem e as imagens na televisão são de seis, oito ou dez mascarados que aparecem todos os anos e são sempre os mesmos. Os média preferem essas imagens, não é que as outras pessoas que participam na marcha não queiram dar a cara.Mas acaba por ser essa a imagem que fica?Essa imagem estereotipada, como a da bicha efeminada ou da lésbica camionista continuam a ser passadas pelos média e não correspondem à realidade. Há tantas diferenças entre nós como há entre os heterossexuais.João Calhaz

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