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Uma aldeia quase fantasma

Uma aldeia quase fantasma

Palhota é hoje uma memória dos pescadores avieiros

Da aldeia de Palhota pouco resta da vida de outros tempos, quando os pescadores avieiros retiravam do Tejo o seu sustento. Sobram as memórias dos poucos habitantes que ali resistem.

Um amontoado de casas coloridas, apoiadas sobre estacas de cimento, ergue-se à beira do Tejo, na pequena aldeia dos pescadores avieiros da Palhota, freguesia de Valada, Cartaxo. Na margem do rio, junto ao pontão de madeira, meia dúzia de barcos flutua com ar de abandono sobre as águas calmas. Na aldeia há apenas um pequeno café explorado por uma família de pescadores que nem sempre está aberto. Não há autocarros que sirvam o antigo abrigo de avieiros, telefone público ou mercearia. A aldeia de pescadores é hoje quase um lugar fantasma.Matilde Jerónimo, 92 anos, é uma das três habitantes da aldeia que a viu nascer. Durante muitos anos o barco foi a sua casa. Foi lá que deu à luz o primeiro dos seus seis filhos. A pequena embarcação avieira servia de oficina, de quarto e cozinha. Era a bordo que cozinhava as refeições para toda a família. O peixe que retiravam do rio era a base da sua alimentação. A carne só se saboreava em dias de festa. De uma vida dura passada na faina da pesca, “Ti Matilde”, como é conhecida na aldeia, só recorda o trabalho. “Criei os meus filhos todos na pesca”. À noite esperava que o peixe ficasse preso na rede e de madrugada partia a pé para as vilas mais próximas com o pesado cesto de verga à cabeça, carregando o filho mais novo de braçado. Enquanto conversa, Ti Matilde lembra-se do filho que perdeu na guerra do Ultramar e leva a mão ao rosto para secar uma lágrima.Trabalhava ao lado do marido. Fosse noite ou dia. À procura da sorte que a maré lhes trouxesse. “Era a camarada dele”, explica. José Manuel ou “Zé Broa”, o último pescador da aldeia, partiu há alguns meses, deixando Ti Matilde entregue às memórias.Matilde Jerónimo remava, pescava e ia de cesto à cabeça regatear o peixe com as mulheres da vila. Era nas praças que as pescadoras se encontravam para falar do trabalho. O sável, a fataça, o barbo e a enguia eram o sustento das famílias avieiras do Tejo.A dureza de uma vida de trabalho lê-se no olhar cansado de uma velha avieira de pé descalço que aguarda sozinha o fim dos seus dias, sentada num velho banco de madeira em frente à casa. A mesma casa que já representou o sonho avieiro.Maria Conde, 75 anos, deixou a pesca há 15 anos. Resistiu à dureza de uma vida na faina, mas luta agora contra a doença. Passou vários anos a carregar cestos de peixe à cabeça até à vila mais próxima. “Andávamos noites inteiras para apanhar uma saboga. Às vezes nem chegava para o pão”.O escritor Alves Redol, que passou uma temporada no ambiente da Palhota e presenciou a labuta da pesca, perpetuou a história dos pescadores do Tejo no livro sobre os “Avieiros”. “Nómadas do rio, como ciganos na terra, tinham vindo da praia de Leiria e faziam vida à parte: chamavam-lhes avieiros”, escreve Alves Redol. No princípio do século XX, os pescadores abandonavam a aldeia piscatória de Vieira de Leiria (nome que originou a designação avieiros) e durante os invernos rigorosos procuravam melhor sorte nas águas mais calmas do Tejo. O Verão era passado na Praia da Vieira, mas com o tempo criaram raízes em algumas aldeias avieiras à beira Tejo. Uma das 14 habitações tradicionais da Palhota foi transformada na “Casa do Avieiro” pela Associação de Defesa do Ambiente “Palhota Viva”. Humberto e Isabel Vasconcelos, um ex-jornalista e uma tradutora que se apaixonaram pela Palhota e passam os fins de semana na aldeia, são os dinamizadores da associação.Ao fim de semana a aldeia recebe a visita de alguns turistas que escolhem a calma do local para pescar, repousar e almoçar nas mesas de madeira à beira rio. Lá, onde o silêncio só é interrompido pelo roçar dos salgueiros. Ana Santiago
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