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Histórias de uma vida dura

Júlia Proença, mulher do campo, cantadeira de Riachos
“Sei dar valor a tudo”, diz Júlia Proença, a responsável pelo grupo As Cantadeiras de Riachos. Tem 67 anos feitos no sábado, 21, e uma dura história de vida que desfia sem ressentimento.É expressiva, fala com os olhos e com as mãos calejadas das fainas do campo. “Toda a minha vida foi no campo, fiz dos piores trabalhos ou melhores, mas nenhum era bom”, conta.Ainda hoje recorda o dia em que fez 10 anos. “Lembro-me como se fosse hoje, fui mondar trigo para o dr. Raposo. A minha mãe não me queria deixar ir porque era muito novinha, mas juntou-se um grupo de miúdas com as mesmas idades e lá fui. Nunca mais parei”.Pelas suas mãos passaram enxadas, foices, pulverizadores. “Fiz de tudo, devo ser das poucas mulheres, senão a única, que gramei cânhamo. Quem souber o que isso é sabe que era trabalho de homem e não para todos”.A necessidade obrigava a tudo, “mas olhe, cantávamos sempre, nunca nos cansávamos, nunca tínhamos calor, nem frio e sempre descalças”. São essas cantigas que As Cantadeiras cantam agora. “Da minha memória já consegui recolher 106 e se me pedirem para cantar um bocadinho de cada uma sou capaz de fazê-lo. Até fico admirada, mas é a realidade”.Cantam nos palcos e nas festas, dantes cantavam para afugentar a dor, das longas caminhadas, a fome e a dureza do trabalho. “Agora temos demais, os jovens de hoje não têm histórias para contar aos filhos porque têm todos a barriga muito cheia”.Júlia Proença acha que Deus a compensou da pobreza em que viveu: “É por isso que sei dar valor a tudo. Sou filha de um homem que foi rico, o meu pai teve três talhos, na Barquinha, na Chamusca e em Riachos, depois os filhos, eram 12, e com o jogo foi tudo... Cheguei a andar a pedir. Não tenho vergonha de o dizer. Mesmo assim os pais mandaram-me à escola, fiz o exame da terceira classe, é pouco, mas agradeço-lhes muito terem feito isso por mim”.Com os olhos lacrimejantes, Júlia Proença recorda aquela vez em que foi com uma vizinha pedir à Quinta de Carvalhais, do dr. Raposo, onde se cozia broa para os cães e para os pobres. A dádiva foi escassa e Júlia, ainda criança, comeu-a pelo caminho - “Eu tinha tanta fome e era tão pouco para tanto filho...” – quando chegou a casa disse que não lhe tinham dado nada, mas a mãe descobriu que era mentira e bateu-lhe: “Chorei tanto nessa altura”.São histórias de uma vida dura, quando o dia começava noite cerrada e o relógio era a estrela boieira, Vénus. Ao nascer do sol, o rancho pegava ao trabalho e despegava quando o astro rei já se tinha escondido por completo no horizonte. Pelo meio, ficava meia hora para o almoço, das 10h30 às 11h00, e a sesta das três às cinco da tarde. “Mas esse tempo também era aproveitado, íamos ao rabisco se era tempo de colheitas, levávamos roupa para lavar se estávamos perto do rio, ou fazíamos renda”.E na cesta do farnel, às vezes não havia nada para comer: “A minha mãe não tinha, eu levava a cesta sem nada dentro, nesses dias ia sozinha para o pé de uma oliveira, para as outras não verem que não tinha que comer. Era assim...”.

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