Driblante Serafim das Neves
Gosto muito de ver jogos de futebol a doer. Daqueles em que toda a gente se insulta, os árbitros mostram cartões de todas as cores e o público atira com moedas, sapatos, cadeiras e tudo o que tem à mão para dentro do campo. Passo tardes divertidas no sofá da sala a ver aqueles esgares, os gafanhotos que saltam das bocas à mistura com palavrões. Os sacos de gelo em cima de joelhos atingidos e os pontos nos sobrolhos de rapaziada mais azarada.É claro que preferia ver futebol mas como sou realista contento-me com as cargas de porrada da polícia de choque, a animação selvagem das claques e as declarações histéricas dos dirigentes. E não vou aos estádios, pois claro. Há quem me diga que aquilo é sossegado e que eu sou um exagerado, mas nunca fiando. Pagar um balúrdio para levar uma traulitada na mona não é bem o meu conceito de divertimento. Nunca fui masoquista e não me apetece começar agora.E nem sequer vou aos joguinhos a feijões. Àqueles em que papás babosos insultam com vocabulário de carroceiro os adversários das suas crias. Não vou mas aplaudo a atitude. O desporto é para homens de barba rija e para mulheres de bigode e pelos nas pernas. É bom que os desportistas se habituem desde cedo à linguagem mais técnica. Aqui há tempos, um jovem contava-me que, no decorrer de um torneio, o público lhe atirava amendoins e lhe chamava macaco por ele ser negro. Sorte a dele não lhe atirarem com tijolos, disse-lhe eu para o animar.Caro Serafim, o Campeonato da Europa começa este sábado e eu só oiço falar em segurança. Adeptos que não podem sair dos respectivos países, treino especial para polícias, milhares de contos gastos em sistemas de vigilância. No último campeonato da Europa houve aqueles empurrões ao árbitro que marcou o pénalti a favor da França e nos lixou a vida. No Mundial da Coreia foi o murro do João Vieira Pinto na pança do homem do apito. Estou preparado para tudo. Não vou perder pitada. Quem sabe, até pode ser que no meio da confusão consiga ver futebol. Às vezes a vida prega-nos umas partidas...Quem tem uma vida de lorde é aquele belga que acampou em frente a um centro comercial no Entroncamento. Um cartaz a dizer: “ Para comer”, e já está. Três meses de boa-vida. É a hospitalidade nacional no seu melhor. Nós pelamo-nos por um pobrezinho. Nós pelamo-nos por um estrangeiro. O gajo faz o pleno. É o dois em um perfeito. Ninguém resiste. E ainda por cima tem um cão simpático. Antigamente, nas aldeias, os senhores ricos tinham os seus pobrezinhos. Este é o meu, aquele é o teu, não havia misturas. Num louvável esforço de recuperação das tradições, os comerciantes do tal centro podem gabar-se de ter o seu pobre. Em regime de exclusividade. A polícia levou o gosma para identificação e foi o cabo dos trabalhos. Houve reclamação, protesto, abaixo-assinado, telefonemas para jornais e televisões. Só faltou um cartaz bem grande a dizer: “Não toquem no nosso pobre. Se querem um, arranjem-no!”.Eu até compreendo o que se passa. Os ciganos e toxicodependentes afastam clientes. Vestem-se mal. Não se lavam com muita frequência. Pedem numa atitude agressiva. Não percebem nada de marketing. O belga reserva parte das dádivas para comprar caramelos para as crianças e flores para as senhoras. Como diria o Pedro Abrunhosa: “É impossível resistir a tanto charme”. O marmelo até pode ser pedófilo, membro de alguma organização terrorista, assassino em fuga. O que é que isso interessa? Anda limpo, bem barbeado, é simpático e fala estrangeiro.A avassaladora onda de solidariedade até se presta a algumas saborosas confusões. Um dia destes o mendigo belga ausentou-se temporariamente do seu local de trabalho e uma caridosa alma, adivinhando alguns sinais de foméca no elemento canino, e tendo reparado no cartaz com o lancinante apelo: “Para comer”, encheu-lhe a marmita das moedas com comidinha para cão, que foi comprar de propósito ao supermercado. Abençoada! E uivando de tanto rir, me despeço. Um abraço canino do Manuel Serra d’Aire
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