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“O que me cansa é não haver trabalho”

António Marques, 86 anos, marceneiro em Santarém

Aos 86 anos, António Marques continua a levantar-se cedo quer seja domingo ou terça-feira, sábado ou quinta. “Ainda hoje me levantei às 6 horas”, diz. De passada ligeira, caminha da Rua de Santa Margarida até à Travessa da Lameira, no centro de Santarém, onde há quase 50 anos, montou a sua oficina de marceneiro. Os seixos das ruas já lhe conhecem os passos.

António Marques foi aprender o ofício de marceneiro aos 11 anos, porque na altura “não havia mais nada”. Depois da tropa, que cumpriu na Cova da Moura, em Lisboa, tentou emigrar para a África, para as antigas colónias, mas não foi possível: “O Salazar não me deixou ir, não me deu os papéis, caso contrário tinha-me arranjado bem melhor. Fui obrigado a ficar”.Continuou no ofício e instalou a sua própria oficina, porque aos 17 ou 18 anos fartou-se de “aturar patrões”: “Eram todos maus e exploradores”, afirma. E à excepção de uns anos em que um antigo colega veio trabalhar com ele sempre executou as suas obras sozinho: “Muito depois de eu estar por minha conta é que ele veio para ao pé de mim, mais tarde morreu e voltei a ficar sozinho”.Mas isso não o preocupa. Apesar de ter aprendido a arte de talhar a madeira porque não havia mais nada, ganhou gosto pela profissão e, actualmente, só lamenta ter poucas encomendas: “Há pouco trabalho e os clientes também são poucos. Coisas para fazer há muitas, mas há muita falta de dinheiro, por isso é que o trabalho não aparece”.“Se começo a lembrar-me de tudo o que ficou para trás, sinto-me triste”, desabafa António Marques e continua como se falasse só para si: “O ofício era bonito, mas pesava muito”. Dantes as ferramentas eram manuais e a maioria feita pelo próprio utilizador. António Marques conserva-as todas alinhadas em bancadas de carpinteiro, num espaço primorosamente limpo, onde os armários têm as portas abertas para mostrar os escopros e formões arrumados por tamanhos. Debaixo de uma das bancadas mestre marceneiro tira uma garlopa que pesa mais de três quilos - “Imagine o que era andar com isto um dia inteiro nas mãos?”.Com os seus 86 anos e muitas histórias para contar, António Marques só se queixa da coluna. “Passei meses dobrado a fazer embutidos em madrepérola ou madeira clara. Hoje já não trabalho tanto nessas coisas, há pouca madrepérola. Trabalho mais em restauro”.O restauro de móveis antigos e a feitura de peças novas segundo modelos antigos foi a principal ocupação deste ancião “nascido e baptizado” em Santarém. “Fazia peças que só visto. A mais cara que fiz foi comprada por um senhor da fábrica de loiças da Vista Alegre. Naquele tempo custou mais de 200 contos, era um armário em vinhático para guardar os paramentos da igreja. Esse senhor comprou-me muitas peças”.António Marques percorria o país, comprava velhos móveis, restaurava-os e voltava a vendê-los. “Tive uma loja aqui em Marvila, depois acabei com isso. Negociei muito com os ciganos e nunca me dei mal, foram sempre meus amigos. Eles andavam pelas feiras, compravam muita coisa e eu comprava-lhes a eles para depois arranjar e vender”.A saudade é cada vez mais visível nos olhos claros de António Marques. “António Marques sem mais nada. Quando era pequeno tinha mais um nome, mas tiraram-mo na tropa, sei lá eu porquê”.“Foi uma vida dura. Nunca passei fome, mas a fome passou por mim. Fugia para as quintas e enchia a barriga com a fruta que roubava. Depois de crescido já não era assim, mas trabalhava de noite e de dia, houve muitos dias que almocei às 11 da noite”, conta com uma certa nostalgia na voz.Todos os dias se levanta cedo, ajuda a mulher com quem se casou há muitos anos – “ela está doente” – e só depois se encaminha para a sua oficina na Travessa da Lameira. Ao almoço a sua presença é sagrada num café próximo, onde encontra mais dois amigos por quem também já passaram muitas décadas.“Continuo a trabalhar porque gosto, nunca me aborreço, nem estou cansado. O que me cansa é não haver trabalho, porque não há dinheiro”, conclui.Margarida Trincão

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