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Para o Mário Viegas

José Niza

Quando gravaste o teu primeiro disco”Mário Viegas diz poemas” eu estava na guerra colonial em Angola. A minha mulher mandou-mo. Mas, como no mato não havia gramofones, tive de esperar meses para o ouvir em Luanda.

(morada desconhecida)Já lá vão nove anos que te foste embora. Como de costume, não se conhece o teu paradeiro certo. Não deixaste nem e-mail nem número de telemóvel. Nem disseste, como o António Lobo Antunes, “Boa tarde às coisas aqui em baixo”. Também não sei se O MIRANTE chega ao sítio onde estás. É verdade que o jornal tem crescido, mas não exageremos…Tenho saudades tuas.Para além da amizade, tivemos em comum a poesia, os discos e a televisão. E também a esquerda. Ou, se quiseres, as esquerdas. Talvez seja mais apropriado.Não vou falar dos teus imensos talentos para tantas coisas, mas recordar apenas o que fizemos juntos. O que é curioso, quando se trabalha com pessoas como tu, ou o Zeca Afonso, ou o Adriano, é que, no momento da criação, não temos a mínima consciência de que estamos a fazer História. Ou, pelo menos, a escrevê-la. Pensamos apenas, “isto não está mal”, “talvez eles gostem”… E a verdade é que gostaram mesmo.Quando gravaste o teu primeiro disco”Mário Viegas diz poemas” eu estava na guerra colonial em Angola. A minha mulher mandou-mo. Mas, como no mato não havia gramofones, tive de esperar meses para o ouvir em Luanda. Por essa altura eu já tinha ouvido discos lá de fora. O Paul Meurisse a dizer as “Paroles” de Jacques Prévert, e a Maria Casarés e a Germaine Montero a recitarem Lorca. Mas, o que me fascinava para além das vozes, era a música que envolvia os poemas. Aliás, desde há séculos que a poesia anda de mãos dadas com a música. Também por essa altura eu já era amigo do Vinicius de Moraes, que conhecera em Paris em 1963, e que dizia os seus poemas (muitos dos quais vieste depois a gravar) embalado pela viola do Baden Powell. Por isso, quando a guerra acabou para mim (sem ter acabado para ela), e eu dirigia a produção dos discos da Orfeu, desafiei-te para gravar “à séria”. Lembras-te disso?Foi assim: tu escolherias os poemas que querias dizer. E, depois de deixares a tua voz gravada, eu avançaria com a música e os músicos para criar aquilo a que eu gostava de chamar de encenação musical. No final, a decisão era tua: se gostasses do resultado, tudo bem. Caso contrário, esquecia-se a aventura musical!Mesmo assim não foi fácil convencer-te. Tu estavas tão amedrontado com a ideia, tal como o José Afonso estava com as concepções musicais do José Mário Branco quando gravou “Cantigas de Maio”, onde está a “Grândola Vila Morena” e outras preciosidades.O “happy end” foi que ambos se renderam e perceberam que, quer o Zé Mário, quer eu, sabíamos o que estávamos a fazer.E assim nasceu o teu primeiro LP – “Palavras Ditas” – onde tu gravaste, entre outros poemas, um do Vinicius de Moraes, “Sob o Trópico de Câncer”. Onze minutos e cinco segundos do melhor que até hoje se fez em poesia declamada. Mesmo antes do disco estar pronto mostrei a fita ao Vinicius. Foi no bar do hotel do Império, em Lisboa. Por acaso também estavam connosco o Chico Buarque e o Baden Powell. No final da audição, o Vinicius ficou quase em estado de choque. E disse-me mais ou menos isto: “Nunca pensei que este poema tivesse tanta força. Foi isto que eu quis dizer e agora ouvi. Mas quem é este “cara”? E eu respondi: “é o Mário Viegas, um amigo meu, que está na tropa e não pôde vir.”O Vinicius pediu uma folha de papel e escreveu: “A interpretação de Mário Viegas do meu poema Sob o Trópico de Câncer é sensacional. Achei-a terrificante”. E foi este depoimento do poeta que, impresso numa cinta de letras brancas em fundo vermelho, abraçou a capa do disco. Depois deste, antes e depois do 25 de Abril, foram muitos discos, quase todos os que tu deixaste.Anos depois, quando dirigi a programação da RTP, desafiei-te para fazeres o que quisesses. A tua resposta foram duas séries de poesia, cada uma de 13 programas – “Palavras Ditas” e “Palavras Vivas” - realizados pelo Nuno Teixeira, um dos melhores directores de televisão que até hoje conheci. Depois, estupidamente, adoeceste atropelado por um vírus que odeia as pessoas e a poesia.Uma vez – lembras-te? – telefonei-te a meio da noite com uma ideia meio-maluca, a de fazermos um disco chamado “Os Mários”. Os Mários eras tu, o Mário de Sá-Carneiro, o Mário Henrique Leiria e o Mário Cesariny. O último Mário era o Laginha, que iria pôr o seu piano sob a tua voz e que aderiu à ideia. Só que o ódio do tal vírus lixou esta aventura.O dia 1º de Abril é o dia das mentiras. Mas quando ouvi que tinhas ido embora, deixei de acreditar nas mentiras do 1º de Abril.Porque é que andam sempre a enganar-nos?Post-ScriptumO jornal Público convidou-me para coordenar a edição da tua obra discográfica original completa. Vão ser 10 a 12 livros acompanhados por 10 a 12 CD´s. Lá para Outono, dezenas de milhares de portugas vão voltar a ouvir a tua voz. Finalmente! Diz-me onde estás para eu te enviar esta colectânea. Até lá, um abraço.

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