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“Gosto de falar na horizontal”

Uma viagem com Álvaro Cunhal no dia 23 de Maio de 1999
A fotografia que ilustra este texto é de 1991 e captada em Vale de Cavalos numa visita de Cunhal aquela aldeia do Concelho da Chamusca. Este texto nasceu de um encontro com Manuel Tiago numa livraria de Lisboa, em Maio de 1996. O avião que nessa noite havia de me levar para o confins do mundo avariou e a viagem foi adiada para a manhã seguinte. Em boa hora. A companhia pagou-me o hotel e a livraria Barata organizou o encontro que eu sempre tinha imaginado com o autor de Até Amanhã Camaradas e figura estimada da minha memória de militante político de esquerda.Para mim um dos maiores enigmas da sua personalidade era a recusa sistemática em responder a todas as perguntas sobre livros, autores e a moderna produção cultural. Como é que um homem que tinha opinião sobre quase tudo recusava sempre falar de livros, de autores e da actualidade cultural do seu país? A explicação surgiu cerca de meia hora depois do inicio da viagem quando a conversa se alargou à cerca de duas dezenas de pessoas que compareceram na livraria.“Não tenho preparação para falar dos escritores e dos intelectuais do nosso tempo. Do que falei antes, quando tinha outra vida, era com conhecimento de causa. Depois deixei de ter tempo para me actualizar. Não sei falar do que não conheço. Era uma injustiça falar dos livros e dos autores sem conhecer verdadeiramente as suas obras”.“Visitei muitos museus para conhecer as obras de que sempre tinha ouvido falar. Quando viajava para a Ex- União Soviética passei muitas vezes por Viana só para visitar os museus. O meu conhecimento foi adquirido vendo essas obras enquanto viajava pelo mundo. Confesso que de todas as artes a que mais aprecio é a música. Tive uma gaita de beiços mas nunca tive muito jeito para tocar. Não conheço nada de música mas é a arte que mais aprecio. Todo o material que tive para escrever sobre arte foi recolhido e obtendo o conhecimento directo das coisas. Até aos anos quarenta. Depois dediquei-me a outras coisas. Tenho pena de não ter variado mais. Mas cada um de nós tem que saber viver com as suas limitações”. A conversa com Àlvaro Cunhal animou a plateia durante mais de uma hora. Eu estava sentado na primeira fila, a cerca de dois metros da mesa, mas Álvaro Cunhal, nessa altura, já falava com o olhar tolhido pela cegueira. Falou de Diderot e da sua influência na formação intelectual dos homens do seu tempo, da criatividade artística como afirmação de liberdade, do trabalho político que obriga a encher as medidas a um homem que realmente quer fazer boa figura, não deixando espaço para outra actividades.“Há obras filosóficas que dizem que um homem pode libertar-se da sociedade. Na minha opinião não pode. Se há obras que têm um valor individual também o têm em termos sociais. O artista cria uma obra que muitas vezes não é exactamente aquilo que ele pensava criar”. As perguntas eram curtas e mais do que de política procurava-se falar de literatura e dos livros que ainda teria para publicar. Mas a doença era sempre assunto de conversa pelo meio.“Tenho 86 anos e várias doenças”, referiu a sorrir. Depois enumerou uma série delas e, ainda a sorrir, exclamou: “digam lá se não é preciso ter muita saúde para aguentar tudo isto?” Depois de contar a história que o obrigou a assumir o pseudónimo de Manuel Tiago, já que um camarada que lhe merecia toda a confiança lhe tinha dito que alguém se preparava para dar uma conferência de imprensa, dizendo que o autor era um comunista dissidente, informação obtida de um outro camarada que entretanto também já tinha falecido, Cunhal contou como nasceu o livro, durante os oito anos que esteve encerrado numa cela. “Esse homem que escreveu o Até Amanhã Camaradas não era ainda o Manuel Tiago. Era uma pessoa muito inexperiente em relação à ficção. Mas tudo é verdadeiro nessa experiência embora os factos e as personagens não o sejam. Tudo é verdadeiro mas não se passou exactamente assim como está escrito. Um critico já tentou adivinhar quem são os personagens do livro mas não acertou em nenhum. Até a mim ele tentou encontrar e não conseguiu. Não sou nada o personagem com quem ele me identificou”.“Escrevi o livro na prisão, mesmo estando ano e meio sem papel e sem lápis, criando registos, fazendo amizades e ouvindo confissões. Mas consegui tudo isto sem entrar na intimidade de ninguém, Sem fazer perguntas. A verdade é que todos os personagens têm os nomes trocados”. No dia 23 de Maio de 1999 Álvaro Cunhal confessava a cerca de vinte admiradores, na livraria Barata, que uma foto do Eduardo Gajeiro, com a cara de uma criança, ganhou um dia um prémio entre quatro mil fotografias a concurso; que em Paris chegou ver filmes que sabia que eram proibidos, injustamente, na ex- União Soviética; que não partilhava da opinião de que em pintura quanto mais parecido mais belo é; que estava a trabalhar em duas coisas muito trabalhosas e não sabia se tinha condições para as acabar. Confessou ainda que tinha 40 volumes de discursos e que, se os tinha pronunciado também os tinha escrito, ao contrário de outros. “E ainda tenho outras obras de que não vale a pena falar”, acrescentou.“Há pessoas que sabem muito mais do que eu. Mas nunca me senti obrigado a olhá-las de baixo para cima. E há outras que sabem menos e eu nunca me atrevo a olhá-las de cima. Gosto de falar na horizontal. Não terá sido com estas palavras que Álvaro Cunhal acabou, naquela noite, a sua viagem pela memória, num encontro moderado pela jornalista Isabel Coutinho. Mas foi por aqui que terminaram as minhas notas sobre este encontro de que guardei ( milagre!) o programa e os rabiscos suficientes para recuperar o que, para mim, foi o essencial desta viagem, em que entrei por a TAP não me poder levar noutra viagem bem diferente.Voltando à fotografia que ilustra este texto: estava a trabalhar para o jornal e o que mais recordo não é a figura de Álvaro Cunhal nem o seu discurso mas as pessoas, o rosto e a emoção das pessoas, algumas delas que eu conhecia e conheço muito bem, que à sua volta tentavam roubar-lhe um beijo ou um abraço. Agora que ele morreu é justo recuperar a sua memória de homem de ideias e de convicções. JAENota: Escrevo este texto em cima de um directório onde também escrevi recentemente uma carta a Francisco Moita Flores para se candidatar à Câmara de Santarém e libertar o concelho desta ditadura de políticos sem carácter e sem memória. Registo o facto porque também me parece justo. Embora seja um mero espectador da actividade política, porque o que me interessa hoje é o exercício do jornalismo e o projecto editorial que ajudei a criar, também é justo que Santarém um dia seja uma cidade recordada por ter sido liderada por um homem que também será capaz de dizer, em qualquer circunstância, que gosta de falar na horizontal. Nota 2: Aviso aos incautos: fui membro da Assembleia Municipal da Chamusca durante dois mandatos na bancada da APU, no tempo em que se preparavam pela noite fora, na sede do PCP, as matérias da ordem de trabalhos. Não aprendi a fazer política com Álvaro Cunhal mas aprendi a respeitar a actividade política com algumas pessoas que, na altura, tinham muito para me ensinar . Esta segunda nota é de uma ingenuidade aflitiva. O meu percurso na política, desde que deixei a bancada da Assembleia Municipal da Chamusca nos ano de mil novecentos e troca o passo, não me deixa mentir. ´

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