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Ditador

Em Abril de 1960, deslocaram-se ao Tribunal de Santarém elementos da brigada de homicídios da Polícia Judiciária.Procuravam localizar o Dr. Cunha Leal, prestigiado advogado. Contrariamente ao que constava, ele não tinha ali nenhum julgamento.O escritório encontrava-se encerrado.Prenderam-no uns dias depois. A suspeita era de assassinato de um antigo cliente.Mas o causídico estava inocente.Iniciou uma greve de fome. Não ingeria alimento algum.Uma das pessoas envolvidas no crime era Zezinha. Ainda não se suspeitava dela quando foi aplicado um golpe curioso.Zezinha – de seu nome verdadeiro Maria José - sentou-se junto ao advogado, nas instalações da Polícia Judiciária. Enquanto conversava com ele, ia saboreando um delicioso bife. E dizia julgar ser ele o autor do crime. Sabendo perfeitamente que isso era mentira.Ao cabo de cinco dias, o suspeito foi libertado. Descobriram-se os verdadeiros criminosos.Foi um dos casos mais conhecidos daquela década.Serviu de inspiração a um famoso romance de José Cardoso Pires: a Balada da Praia dos Cães, mais tarde adaptado a filme.O capitão Almeida Santos era a vítima do crime. Ele tinha fugido da cadeia de Elvas, depois de ter sido preso por envolvimento na intentona política de 1959.Foi encontrado morto na praia do Guincho, em Cascais.O seu advogado era precisamente o Dr. Cunha Leal. Sucede que precisamente na altura do homicídio, ele desapareceu de circulação. Houve logo suspeitas. Foi o que levou à sua detenção.O pai do causídico era um conhecido político, opositor do regime. Fora primeiro ministro na I República.Certo da inocência do seu filho, caiu, porém, num erro. Pensou tratar-se de uma vingança política.Escreveu uma carta a Salazar. Terá sido dos poucos a chamar-lhe, abertamente, velho ditador. Dizia o Engº Francisco Leal:“Abomino os ditadores – perdoe-me V. Exª que honradamente lho diga. […] Somos velhos, Sr. Dr. Oliveira Salazar. Aguardo serenamente o fim de uma vida vivida com dignidade. Rogo a Deus humildemente que seja benevolente para com os meus pecados, mas há um de que não me posso arrepender: o de não perdoar àqueles que, para magoarem um velho, atacam e ofendem os seus filhos”.O interessante é que o Presidente do Conselho respondeu sem mostrar agastamento. Fê-lo já após a libertação do preso:“Felizmente, a parte essencial que amargurava V. Exª já pôde ser resolvida e, com isso, me congratulo. Compreendo bem o desgosto que lhe causou a detenção do seu filho. Houve, porém, exagero da sua parte ao pensar que haveria o propósito de sustentar uma acusação horrível”.No julgamento final, foram condenadas as três pessoas que viviam com o Capitão Almeida Santos enquanto ele permaneceu na clandestinidade, depois de fugir da prisão.Ele tinha falhado uma tentativa anterior de evasão. Por isso, fora transferido da Trafaria para Elvas.Mesmo assim, escapou graças à conivência de um carcereiro.Evadiu-se conjuntamente com um outro preso, aspirante do Exército.O cabo que os ajudara a fugir acompanhou-os, desertando.Juntaram-se a Zezinha, companheira do capitão Almeida Santos.Passaram os quatro a viver juntos.O capitão começou a ficar dominado pela solidão.Refugiou-se no álcool.Tornou-se agressivo.Discutia com os dois homens. Batia à companheira.Sem que Maria José soubesse de nada, o aspirante e o cabo dispararam sobre a vítima, que se encontrava sentado no sofá, de pantufas.O problema era livrarem-se do corpo.Zezinha assumiu tal responsabilidade. Decidiu telefonar a sua mãe, que a ajudou a realizar o transporte no seu Volkswagen carocha.Nesta fase, ocorreu algo de singular. Veio a causar muita discussão no julgamento.Maria José apercebeu-se de que, embora inconsciente, o capitão ainda respirava.Foi avisar os seus companheiros.O cabo regressou à sala do apartamento. Deu o tiro de misericórdia.Na sentença, ficou provado que a ré foi avisar os outros dois “ de que o Almeida Santos ainda não estava bem morto”.É uma expressão curiosa. Pertence ao género daquelas que se ouvem com alguma frequência nos tribunais: “completamente morto” ou “morreu definitivamente”. Como se pudesse haver alguém mal morto, parcialmente morto ou provisoriamente morto…Apesar deste aspecto, Zezinha veio a ser condenada apenas por encobrimento do crime e ocultação de cadáver.* Juiz (hjfraguas@hotmail.com)

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