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Um trabalho duro como a pedra

José Manuel Soares, 66 anos, encarregado de uma fábrica de gesso

José Manuel Soares é um daqueles casos que podem caber na frase batida de “a minha vida dava um livro”. Encarregado de uma fábrica de gessos na Zibreira, Torres Novas, já fez de tudo na vida e cruzou o Atlântico por diversas vezes em busca de novos mundos.

Não há lixos no chão, mas um pó fino e áspero pousa em todas as superfícies, das traves que sustentam a cobertura ao chão cimentado. Ali, na fábrica de gesso, triturando, queimando, moendo e ensacando a pedra vinda de Espanha e de Óbidos, José Manuel Soares encarrega-se de todo o processo produtivo. Nasceu no Sabugal, distrito da Guarda, e depois de ter cruzado o Atlântico em busca de novos mundos aportou na Zibreira, uma pequena aldeia do concelho de Torres Novas.“A minha vida dava um livro”, diz este homem, cujo sorriso e simpatia escondem a amargura de uma vida dura. Na fábrica as coisas também não correm da melhor forma. O gesso é sobretudo aplicado na construção civil e a crise que grassa no sector afecta todas as unidades fornecedoras de materiais. Os moinhos de martelos, com os seus “resguardos” enfunados despejam nos sacos de papel o gesso que há-de estocar as paredes e tectos dos edifícios, ou produzir peças de cerâmica. Há ainda um outro produto, o gesso de segunda, utilizado nas serrações de mármore, para calçar os grandes blocos extraídos das pedreiras.“A diferença está na pedra que é utilizada”, explica o encarregado. No gesso de segunda a matéria prima vem de Óbidos, enquanto para o de primeira e de cerâmica a pedra é importada de Espanha. “É um gesso mais fino e para a cerâmica ainda mais”, continua, mas a produção principal da fábrica é a de gesso para estuque.O processo sem ser demasiado complicado exige saber e acaba por ser penoso. “É um trabalho duro sim”, afirma José Manuel Soares. A pedra, que se amontoa num telheiro no exterior da fábrica, é levada manualmente para a britadeira, a brita entra então num forno a temperaturas de 180º (gesso de primeira) ou 160º (o de segunda) e só depois é moída nos moinhos de martelos e ensacada. Antes de José Manuel Soares chegar à Zibreira tinha vivido quase 20 anos em África. “Fui para Angola em 1958 e regressei em 1976, depois da independência. Fiz quatro anos de tropa e os outros a trabalhar”, conta. Os anos da guerra foram dos piores da sua vida “Vi coisas que nunca pensei ver”, recorda. Entrou para o Exército no ano em que começou a guerra, em 1961. Foi de cavalaria e ficou aquartelado em Luanda, mas a toda a altura podia ser chamado para qualquer lado. “Vi coisas horríveis, cabeças de brancos e pretos espetadas em paus, nem quero que me lembre...” Regressou à sua terra em 1976, com 36 anos e em 1979, através de familiares, arranja emprego na fábrica da Zibreira. “Vim como motorista e ainda hoje quando é preciso pego na camioneta e vou fazer entregas”. Mas este trabalho teve um interregno de vários anos: “Em 1986 aborreci-me e fui para o Brasil”.Mais 14 anos a desbravar a sorte, entre Pernambuco e Alagoas. Trabalhou como motorista de uma senhora que tinha dois filhos demasiado irrequietos para o seu gosto. Fartou-se “de aturar meninos” e empregou-se numa fábrica de açúcar, depois foi para as fazendas “ver vacas morrer de fome e de sede”, devido à seca. De permeio comprou à sociedade com um amigo que já vinha dos tempos de Angola um restaurante e, em 2000, regressou mais uma vez, com a mulher e os filhos, e voltou para a fábrica da Zibreira.No Brasil deixou um dos seus cinco filhos e dois dos seus nove netos. Foi vê-los o ano passado e talvez atravesse mais uma vez o Atlântico quando se reformar. “Vê que a minha vida dava um livro?”, questiona em jeito de afirmação. Os percalços porque passou tiraram-lhe a alegria e apesar de achar que já era altura de descansar não sente grande vontade em gozar a vida: “Eu sei que tenho um feitio amarrado, mas já passei tanto... Tantos problemas...”Pelos menos até Dezembro vai continuar a trabalhar das 08h00 às 17h30, na fábrica de gessos. A escolher a pedra e a dirigir a moagem do calcário que há-de cobrir tectos e paredes de novos e velhos edifícios.Margarida Trincao

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