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Há um estranho pavor que me atormenta

A propósito de Santarém
Há um estranho pavor que me atormenta. Descobri as raízes dos ímpetos da minha inveja. Perguntará o leitor: inveja da fortuna e da saúde alheias? Nada disso! Sou um incorrigível invejoso é da divinal inteligência dos sábios deste mundo.Dou um pequeno exemplo: de tempos a tempos, surgem no firmamento das preciosidades literárias revelações como a de que “Santarém é a pior de todas as capitais de distrito de Portugal”.Nessas alturas, afogado num mar de inveja, sinto-me um pigmeu do reino de Lilliput, criado na cáustica imaginação do irlandês Jonathan Swift, autor das Viagens de Gulliver, em 1726. Dentro da minha ilimitada ignorância, o “melhor” e o “pior” caem nas complexas teias do que é a qualidade. E o que é a qualidade? Esse será, porventura, o mais secreto segredo de um sábio. Fernando Pessoa, por exemplo, escreveu, com todas as letras, o seguinte: “chamo à atenção das pessoas criticamente competentes (a sua existência entre nós é uma hipótese da minha delicadeza) para o facto evidente de que a Pátria de Guerra Junqueiro é, não só a maior obra dos últimos trinta anos [1884-1914], mas a obra capital do que há até agora na nossa literatura. Os Lusíadas ocupam honradamente o segundo lugar”.No meu modesto parecer, qualidade é, enfim, uma grandeza multifacetada. Exige a avaliação de requisitos diversificados e de parâmetros concretos. Os gostos e as opiniões, por seu lado, podem variar de análise para análise, de cidadão para cidadão.Para mim, o monumento X pode ser mais belo do que a igreja Y. Para outros, a mesma igreja Y será bem melhor do que o monumento X. Eu posso preferir o carro Z ao carro W, enquanto que o meu filho pode entender exactamente o contrário. Para a minha avó, uma carroça puxada por um burro velho seria, de certeza, melhor do qualquer automóvel.Postas assim as coisas, só uma criatura abençoada por Deus com os predicados da inteligência total, capaz de rivalizar com Fernando Pessoa, é que pode dizer, exactamente, qual é a melhor ou a pior cidade, após avaliar (com todo o rigor) 10, 20 ou 30 parâmetros de qualidade e da sua própria ausência…Eu conheço para aí uma dúzia de sábios que afirmam, reiteradamente, que Santarém é a pior cidade portuguesa. Todos esses senhores possuem uma glória em comum: abandonaram os “cus de Judas”, onde terão nascido, para virem viver na “pior capital de distrito”! São sábios, sábios de verdade. Que Deus os abençoe, permanentemente, com os dons da inteligência total, enquanto eu aprendo a conviver com o pavor desta minha insólita inveja.Póvoa da Isenta (Moinho de Vento), 11 de Setembro de 2005.

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