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Sentir a morte de um estranho

Perdeu a vida num acidente de viação.Significa que teve forçosamente de haver autópsia.Como a morte se deu a um sábado, teve tudo de ficar para a semana seguinte.Ela contava quarenta e um anos. Teria certamente muito mais tempo de vida pela frente, ao lado do marido e dos três filhos.Mas já havia conversado sobre a morte.Não queria que ninguém fosse de luto no dia do funeral. Pretendia ser cremada.A vontade foi respeitada escrupulosamente.A missa de corpo presente teve lugar na igreja onde ela se casou. O pároco já é outro.No entanto, por acordo com o que celebrou o matrimónio, foi este a presidir à cerimónia.Foi minha colega da escola secundária e nunca mais a tinha visto desde essa altura.Passaram oito dias desde a tragédia e não deixo de pensar no assunto.À minha mente vêm aqueles da minha idade que já partiram.Primeiro, foi o Abílio.Era amigo de infância. Mas no final da adolescência, afastou-se.Uns tempos depois, a saúde andava muito debilitada e veio a morrer de Sida.Com a Ângela, passou-se uma coincidência impressionante.Eram cinco da tarde e eu tive uma enorme vontade de lhe telefonar. Já não sei o que sucedeu, mas acabei por não marcar o número.No dia seguinte, vim a saber que precisamente àquela hora ela tinha posto termo à vida.A morte da Zita deixou-me sem conseguir encontrar uma explicação.Surgiu morta na cozinha. Não chegou a realizar-se autópsia.Ela tinha passado por uma forte depressão.Mas foi, com certeza, afastada a hipótese de suicídio.De resto, ela até andava feliz da vida. Tinha acabado de ser admitida no curso de formação para juízes.O São Pedro matou-se mesmo.Era meu colega do Centro de Estudos Judiciários. Tínhamos recebido as classificações de termo das actividades teóricas. Seguia-se o estágio nos tribunais.Ele não se queixou nem das notas nem do local onde fora colocado.Mas enforcou-se na garagem de sua casa.Há dias, foi a vez da Cristina, num brutal acidente.Estes desaparecimentos marcam-me profundamente.Contudo, no meu dia a dia, também vou sabendo de mortes impressionantes.Em circunstâncias bem misteriosas e trágicas.Não deixo também de pensar sobre esses casos e acabo por construir imagens do que terá sucedido antes do falecimento. Naturalmente, desenvolvo também alguns sentimentos.Ora tal levanta uma curiosa questão.Nós sentiremos a morte de estranhos?Recorde-se o trágico falecimento de Sérgio Vieira de Mello.Todos acompanhámos o seu empenho pela reconstrução de Timor Leste, ao serviço das Nações Unidas.Reencontrámo-lo mais tarde no Iraque, para onde levou o seu espírito de homem de paz.Soubemos do atentado terrorista.Um camião com 230 quilogramas de explosivos colidiu propositadamente contra o edifício das Nações Unidas em Bagdad.Sérgio ficou gravemente ferido sob os escombros. Ainda realizou chamadas através do seu telemóvel.Mas faleceu antes de chegar ao hospital devido à significativa perda de sangue que o afectou.De todo o mundo, choveram votos de condolências.De uma forma ou outra, vivenciámos o seu falecimento. No entanto, não o conhecíamos pessoalmente.A questão tem sido objecto de reflexão e estudo.Não existe luto na acepção de sentimento de perda.Raramente a morte de um estranho é factor de stress.Apenas algumas pessoas que lidam muito proximamente com mortes inesperadas podem desenvolver stress pós traumático.É o caso de sobreviventes de desastres.A pessoa que vê os outros perderem a vida assume que poderia ter feito algo para salvar a vida daqueles que faleceram. Culpabiliza-se.Sente-se feliz por ter sobrevivido. Mas tem dificuldade em compreender por que razão foi ela a beneficiada e outros não tiveram idêntica sorte.* Juiz(hjfraguas@hotmail.com)

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