Bernardo de Santarém
Santareno de Santarém ascendeu, pela sua genialidade, ao panteão dos grandes dramaturgos europeus e é nosso dever, como portugueses, trazê-lo de volta ao seu povo, libertando-o do esquecimento, não admitindo que seja ‘guetizado’, entregando-o àqueles sobre quem escreveu com a lucidez dos sábios.
A recente tomada de posse nas funções que desempenho na Câmara de Santarém, e o natural volume de trabalho que nos assoberba nos primeiros dias de um tempo novo e apaixonante projecto, não me permitiram viver como desejava o conjunto de acções que evocaram a obra e a vida de Bernardo Santareno. Talvez por expiação, talvez por necessidade de reparar o mal que a mim próprio fiz por tal afastamento, decidi-me por estas linhas, como uma oração laica de convocação da memória sobre o legado que nos foi entregue pelo maior dramaturgo português do séc. XX. Diria mais: não se exagera se dissermos que com Gil Vicente e Almeida Garrett, Santareno faz parte dos poucos sinais luminosos num país que pariu grandes poetas e romancistas mas que foi fraco na reprodução de dramaturgos. Conheci-o pessoalmente, ele a poucos anos da morte e eu a dar os meus primeiros hesitantes passos como escritor. O que da pessoa recordo é pouco comparado com a omnipresença de muitas das suas obras que vieram a influenciar a minha vida pessoal e as minhas perplexidades e interrogações existenciais. O poeta d’Olhos de Víbora, o narrador Nos Mares do Fim do Mundo, de onde viria a inspirar-se para uma das suas mais importantes peças – O Lugre – revelar-se-ia ao longo das duas décadas que decorrem entre meados dos anos cinquenta até aos anos setenta como um incansável perscrutador do mundo dos mitos e das crenças mais profundas que funcionam como tampão e travão ao pulsar individualista da liberdade. O Pecado de João Agonia ou A Traição do Padre Martinho atiram-nos para esse mundo de trevas, e reescrevendo Eduardo Lourenço, diria esse mundo tridentino, musculado pelos dogmas da Contra-Reforma, que se agarra como mordaça e algema inibindo a diferença, anatematizando o novo e o belo, interditando a sexualidade, impondo baias, não só ao pensamento como ao agir dos homens.Em António Marinheiro, onde melhor se expressa a dimensão trágica da sua dramaturgia reactualizando o mito de Édipo através da paixão incestuosa de António e Amália, ou n’O Crime de Aldeia Velha, onde o contrabando é pretexto para a denúncia da repressão exercida pela ditadura, Santareno, no meu entender, nunca retirou as lunetas do psiquiatra (valência onde se especializou como médico) para melhor compreender o poder censório do preconceito, enquanto evidência de uma cultura firmada num artificio de preconceitos, que o coloca como herdeiro directo das angústias existenciais, e até perto do modelo estético, que marcou a obra de Garcia Lorca. Quer na peça O Inferno quer n’O Judeu, assim como em toda a sua obra, é manifesta essa necessidade de dar testemunho da procura de um caminho para a liberdade ainda que a ela só se afirme e realize no limite trágico da morte. Embora marxista, esta relação entre morte e liberdade aproxima-o de Hegel, e daí que não admire que escrevendo sobre microcosmos (o seu tempo e espaço de acção é sempre muito limitado ou a uma aldeia ou a um bairro ou até um barco) resulte da trama dramática uma fome de universalidade e intemporalidade que apenas se consuma com a realização da utopia que se consubstancia na libertação social, política mas essencialmente espiritual dos seus personagens mesmo que essa epicidade libertadora seja a própria morte, o ilimite hegeliano para a sustentação ética do viver.Acho que vi representar todas as peças de Bernardo Santareno. De uma delas, inclusive, guardo uma experiência pessoal única: conheci a minha mulher quando ela representava O Pecado de João Agonia. Há mais de dois anos que discuto com o meu querido amigo Nicolau Breyner a adaptação d’O Lugre para cinema e de vez em quando passo os olhos pelo O Bailarino ou pelo Duelo e antevejo as imagens de uma série televisiva..Santareno de Santarém ascendeu, pela sua genialidade, ao panteão dos grandes dramaturgos europeus e é nosso dever, como portugueses, trazê-lo de volta ao seu povo, libertando-o do esquecimento, não admitindo que seja ‘guetizado’, entregando-o àqueles sobre quem escreveu com a lucidez dos sábios. E porque, como sublinha Ortega Y Gasset, nós somos também a nossa circunstância, não posso deixar de aproveitar o circunstancialismo de estar presidente da Câmara para, durante o ano de 2006, propor ao executivo a que presido a criação do Instituto Bernardo Santareno por forma a gerir e divulgar a sua obra assim como de outros autores portugueses ampliando e fortalecendo as artes de todos os palcos. De certa forma, a sua obra é a metáfora exemplar sobre o futuro da sua própria terra – Santarém só fará sentido na história futura se conseguir saltar dos limites da sua aldeia, do seu bairro, do seu barco para a universalidade do saber culto e, por isso, solidário.
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