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A artista eremita

Erika Brás, pintora e escultora, passa os dias no atelier de Santarém

A escultora e pintora Erika Brás vive da arte e para a arte. Transformou o seu atelier da Portela das Padeiras, em Santarém, no seu refúgio. É lá que passa os seus dias. Sem relógio e, às vezes, sem uma única pausa. É a arte que a alimenta.

Um dorso de mulher repousa sobre um suporte rectangular no atelier de escultura. A textura é rugosa, enferrujada, cravejada de pequenas crateras. No cimo uma antena da mulher que procura uma sintonia. É o “ensaio sobre a incongruência”, uma alegoria à contradição, da autoria da pintora e escultora Erika Brás, 38 anos.É também um grito de revolta, tal como o seu próprio modo de vida. Erika Brás é quase uma eremita. Vive da arte e para a arte, fechada no atelier. Na típica casa térrea da Portela das Padeiras, em Santarém, refugia-se noite e dia numa espécie de obsessão pela obra. A inspiração surge sem hora marcada. A artista trabalha seja dia ou noite e, às vezes, sem pausa para uma refeição. É a arte que a alimenta. “Quando estou empenhada a obra entranha-se de tal forma que não consigo fazer outra coisa. É um processo que não pode ser interrompido. O mundo pode cair que não me importo”, garante Erika Brás.No atelier dezenas de quadros repousam virados para a parede. São telas semi-acabadas. Amadurecem na cabeça da artista à espera do momento em que Erika Brás dará as últimas pinceladas. Como aquele perfil de homem nu repousado sobre um sofá. “A ideia fica a marinar a um nível subconsciente, a processar. Há um dia em que, sem mais nem menos, pego na obra e faço o que não fui capaz de fazer em três ou quatro. Acho que é quase como estar grávida”, descreve Erika Brás.A obra que produz deixa às vezes de estar sobre o controlo da artista. É quase transcendental. O importante é que a obra comunique. E que a mensagem universal passe para os observadores. “Quando a obra de arte comunica com os outros atinge o estatuto de arte. É como a poesia. O poeta diz numa frase aquilo que todos nós sentíamos e que não conseguíamos expressar”, descreve. Os materiais que Erika Brás utiliza no seu trabalho também resultam da inspiração dos dias, das descobertas acidentais. A escultura sobre a incongruência, um dos trabalhos que esteve exposto no Salão de Outono do Fórum Mário Viegas, foi esculpida em cimento.A artista descobriu o material durante as obras de construção do atelier, nas traseiras da casa. Durante o reboco das paredes. Os restos de cimento deixados pelos construtores foram transformados em sedimentos que deram corpo à obra de arte.Há pouco tempo a artista descobriu a dimensão artística dos ossos. As peças de contornos redondos, despojados no quintal pelos três cães da artista, captaram a atenção de Erika Brás. Agora os “restos orgânicos” são tratados pela escultora, que sobrepõe as peças e lhes dá outras formas. “Um dia olhei para eles e achei-os bonitos. E comecei a achar interessante e sugestivo o resultado. Temos que estar atentos àquilo que a vida nos vai oferecendo”, aconselha a artista, que a partir das peças faz composições abstractas de pequenas dimensões.O gesso e as estruturas de ferro e arame também temperam a obra da escultora e pintora, que tanto se dedica a formas abstractas como retrata em escultura o busto perfeito dos homens.O primeiro foi produzido sobre a imagem de um duque francês, turbante sobre a cabeça. Erika Brás gostou do efeito e fez uma réplica que guarda no seu atelier. Mais do que captar a imagem é essencial para a artista transmitir na obra o carácter do retratado.A artista vive isolada no meio da arte. As ligações afectivas não são duradouras porque a Erika Brás sobrepõe a paixão pela obra a todas as obras. Mas não se sente incompleta. “Vivo só, mas não solitária. Os trabalhos preenchem-me de tal maneira que não sinto necessidade de mais nada”.Erika Brás é natural da África do Sul mas viveu a infância em Águeda. Descobriu a arte ao folhear as páginas de uma enciclopédia, no escritório proibido do pai. Foi obrigada a escolher a área de contabilidade para fugir à arte, mas acabou em Lisboa, inscrita no curso de artes plásticas, por sua conta e risco. Aos 26 anos, com a idade que normalmente se acabam os cursos superiores, Erika Brás iniciou o sonho. Raramente se vislumbra pelas ruas de Santarém, concelho onde reside há cerca de três anos. A galeria Artmarma atraiu-a ao concelho. O projecto durou pouco mais de um ano, mas a artista decidiu ficar ligada à terra.Só os telefonemas para a família e as aulas de pintura que dá no atelier a ligam ao mundo real. E também ajudam na subsistência. Mas Erika Brás não gosta de associar o dinheiro à arte. É desprendida, vive sem luxos, a reinventar e a criar. Apenas para poder retirar prazer da sua arte. “Não pinto para as pessoas, pinto para ser feliz”.Ana Santiago

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