O empresário que escapou ao Seminário
Recusa utilizar o computador e garante que nunca lhe fez falta
Qual é o segredo para aos 86 anos ter uma lucidez invejável? Nasci numa aldeia. É o bom ar. Não é o ar poluído dos caixotes das cidades. Os exageros das higienes deixam as crianças sem defesas. O facto de contactar ali com milhentas bactérias, agentes patogénicos, cria imunidades que hoje em dia as crianças não têm. Os meus netos também não terão.Nasceu numa aldeia. Aos seis anos guardava gado. Como foram esses tempos?(Longo silêncio, engole em seco, pede desculpa) Sou filho de agricultores. Remediados, mas muito pouco remediados. Porque éramos seis irmãos. O mais velho ainda é vivo e analfabeto. Os outros cinco sempre que podiam iam à escola. Mas antes guardavam o rebanho da família na aldeia de Amoreira. Comecei por guardar aos seis anos o pequeno rebanho do meu avô. Aos nove anos fui para a escola, em Proença-a-Nova. Dos 13 aos 15 anos estive num seminário na Guarda. Depois voltei para casa. Penso que por um problema de saúde. Fiz-me pintor da construção civil. Fui trabalhar com um mestre dois anos de borla para me ensinar. E depois fui trabalhar por conta própria até vir para o serviço militar.Nunca teve intenção de seguir a vida eclesiástica?A minha mãe encaminhou quatro dos seis filhos para o Seminário. Não havia outra maneira de estudar. Mas dois ordenaram-se. Já morreram. Um deles foi superior geral dos missionários e o outro foi professor. Tinha-se formado na Universidade de Friburgo.O meio é bastante religioso. Toda a gente que era convidada para ir para o Seminário ia. Não havia colégio. Não havia liceu. Não havia nada. Era uma saída. Dizer que fui mal intencionado, não. Fui à espera de alguma coisa. Mandaram-me para casa para descansar e voltar. Mas eu não voltei.Em Lisboa chegou a viver num Hotel.A partir de 1948 vivia no Hotel Tivolli. O hotel facilitava a vida. Não tinha que cuidar pessoalmente das minhas coisas. Por outro lado o hotel era de pessoas da região e isso facilitava relações.Já utilizou várias vezes a expressão “Graças a Deus”. É católico?Sim. Vou à missa. O que é um mundo sem crenças? Eu tenho uma esperança. Quem não tem fé, só espera ser tijolo daqui a uns anos! Para mim a vida é uma passagem.Começa o dia muito cedo?Levanto-me todos os dias às sete e meia da manhã. Vivo em Lisboa e por enquanto à minha vontade. Vivo em Lisboa porque a minha mulher não quis viver fora. A minha mulher também é da aldeia. Pensei numa moradia. Nunca quis viver numa moradia porque tinha medo de lá estar. E a gente tem que respeitar essas coisas. O meu gosto seria viver numa quinta em Mafra, em Sintra ou em Loures. No Ribatejo…Numa quintarola.Transmite aos seus filhos os princípios sociais que tem seguido?Acho que sim. Nunca nenhum me pediu um carro. O filho licenciou-se na Inglaterra e lá trabalhou em projectos. Agora é professor do Instituto Superior Técnico. Insisti várias vezes para que comprasse um carro. Comprou uma bicicleta. Uma filha doutorou-se m Glasgow em engenharia genética. A outra filha é economista e também nunca pediu um carro.Tem tempo para as leituras?Muito. Deito-me às 21h30 e às 23h00 ainda estou a ler. Ultimamente estive a ler um livro do Renan, uma espécie de mago do racionalismo francês. Outro livro que li recentemente foi Averrois, um filósofo árabe, médico. Descobri que não é bem verdade que foram os árabes que trouxeram a cultura grega para a Europa. A cultura grega conservou-se sempre bem viva em Constantinopla. Até 1453, quando acaba a idade média. Quando os turcos ocupam Constantinopla a elite voou para o lado de cá com as obras que pode trazer. E é ai que se descobre grande parte disso. Os positivistas do século XIX não querem aceitar isso, mas a história é esta. É um homem de paixões?Sempre muito controladas. O empenho a esta causa foi uma paixão…Não lhe chamo paixão. Chamo-lhe determinação. Quando parti não sabia o que me esperava. Fui atrás das oportunidades. Uma coisa muito importante: não tenho consciência de ter prejudicado alguém na vida. Ajudar sim, ajudei muitos. Mas no mundo dos negócios diz-se que quando alguém triunfa outros têm que ser sacrificados…Viajei por África porque encontrei dificuldades no pequeno mercado português. Tinha dificuldades enormes em crescer porque havia uma indústria poderosa que se tinha feito durante a guerra. Fui para onde não competia com o que cá havia. Continuo a não ser muito competitivo aqui. Mais de 60 por cento da nossa produção é exportada. E esperamos em 2008 chegar aos 80 por cento. Passo ao lado e percorro o meu caminho. Qual é a sua relação com os computadores?Não uso. Quando quero estudar um tema encomendo um dossier com informação da Internet. Por ali vejo o essencial do problema. Se for preciso mais estudos mando fazer. Tenho de compreender o que estou a fazer. Se não compreender não faço. Tem que dominar a área em que está a investir…Não sou capaz de mexer em genética, mas compreender o que lá se está a passar, sim. O que as pessoas têm que fazer, sim. Tenho que medir os meios necessários para pôr em marcha qualquer iniciativa e tenho que medir os resultados que dai posso tirar. Se o negócio não tiver rentabilidade não vale a pena caminhar por ai. Caridade só a que a rentabilidade dos negócios permite.Também faz negócios só por caridade?A mão direita não deve saber o que a mão esquerda faz. É do evangelho. Há coisas que a gente não as diz. E tempo para família?Talvez no princípio os filhos precisassem mais de apoio. Mas eu estava muito disperso. Em 1965 era administrador de várias empresas, era deputado, era vereador da Câmara de Lisboa. Não tinha muito tempo para a família. A minha mulher aguentou bem.Qual é a sua equipa de futebol?Nunca fui a um jogo de futebol. As minhas selecções são livros. Tem por hábito ir ver espectáculos?Vi algum teatro e algumas das peças mais famosas. O melhor teatro que vejo todos os dias é o do mundo que vi e a memória guardou.
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