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Uma filha do Tejo

Clementina Lobo já só tem memórias da vida de avieira

O rio foi durante anos a fio o mundo de Clementina Lobo e ainda hoje é o Tejo que vê da sua casa no bairro dos avieiros da Póvoa de Santa Iria. A banca de peixe no mercado de Vila Franca garante-lhe o sustento.

Filha de avieiros, aos oito anos já Clementina Lobo saía para o rio com os irmãos mais velhos para pescar. Nunca chegou a andar na escola, não sabe ler nem escrever. Fez-se mulher a trabalhar arduamente. Com as dificuldades próprias da idade, mas “cheia de genica”, a jovem avieira lançava a rede e remava a bateira. “Sempre a remar” Clementina e os irmãos percorriam o Tejo “noite e dia, conforme as marés”. De Vila Franca à Póvoa pescavam enguias, linguados ou camarões. “Estes novos nem sabem o que isso é! Remar um barco uma data de horas, o esforço que era preciso fazer”, diz com um sorriso de orgulho por conhecer uma realidade que a maioria hoje ignora. Clementina Lobo só ficou a saber como era andar num barco a motor já depois de casada. Depois da pesca a avieira e os irmãos levavam o resultado de muitas horas de trabalho aos pais que iam para as ruas de Vila Franca vender o peixe. Tempos difíceis, de muito trabalho e sem o lucro correspondente. “Carregavam-se as redes, mas não dava dinheiro. O nosso peixe não tinha valor nenhum”.Na altura, praticamente tudo o que pescavam era destinado à venda. Por isso, para comer restava o bacalhau, então “o peixe do povo”. Fome nunca passou, mas diz que também nunca andou de barriga cheia. Para não haver perdas de tempo, a casa da família de Clementina Lobo era o barco atracado na margem, em Vila Franca. Era o seu lar flutuante. Apenas durante a época do sável, ficavam numa barraca que tinham próximo de Salvaterra de Magos. Depois desciam novamente o Tejo e ficavam por Vila Franca os restantes nove meses do ano.Do tempo em que andava com os irmãos, Clementina recorda as partidas que o rio Tejo lhe pregou. Um dia o barco em que ia com o irmão afundou-se e Clementina Lobo pensou que ia morrer afogada. Valeu-lhe o irmão que a levou até à borda. Um episódio que já tem mais de 30 anos, mas que ainda está bem presente na memória da avieira. Depois de casar, aos 21 anos, Clementina deixou o barco da família e foi com o marido morar para o bairro dos avieiros na Póvoa. Continuou a pescar e a vender o peixe em Vila Franca. Por isso, para a avieira esta é que é a sua terra.Já casada, comprou uma banca no mercado municipal, mas para poder criar os dois filhos, depois da venda no mercado ia para as ruas. Uma actividade arriscada, já que por diversas vezes teve que fugir à polícia por não ter autorização para a venda ambulante. Chegou inclusive a ir parar ao tribunal, com outras vendedoras. Um percalço que acabou por ser uma vitória para as vendedoras já que o “juiz ralhou com os polícias, porque nós andávamos a ganhar o nosso sustento”. Nessa época o dia começava às três da madrugada para ir buscar o peixe à ribeira a Lisboa e só terminava depois das 19h00, quando finalmente regressava a casa para o merecido descanso. Merecido e necessário, porque às três da manhã recomeçava a rotina.Quando o marido faleceu, há 19 anos, o mundo de Clementina Lobo desabou. Deixou a pesca e passou a dedicar-se exclusivamente à venda de peixe. A tradição avieira da família perdeu-se. Hoje a filha toma conta da banca de Clementina no mercado de Vila Franca, mas já não sai para o rio. Apesar da vida de peixeira ser mais tranquila que a de avieira, Clementina Lobo diz que se sentia “mais feliz” no rio. Por um lado, por ser uma actividade mais dinâmica, e por outro, “por andar com os meus irmãos. Foram melhores tempos”, remata. Hoje, aos 60 anos, continua na banca para ajudar a filha, mas sobretudo para se distrair. Os problemas de saúde que tem actualmente reflectem uma vida inteira de trabalho sem tréguas. Sara Cardoso

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