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A menina que corria como os rapazes

Torneios inter-freguesias revelaram grandes talentos
Os torneios inter-freguesias foram uma criação sua e foi aí que apareceu a Susana Feitor. Ainda se recorda da primeira vez que a viu correr?Ela, como muitos outros, apareceu nos treinos de captação que eu fazia nas escolas para esses torneios. Nas Alcobertas os miúdos queriam era jogar à bola e eu ouvi dizer que havia lá uma miúda que corria e jogava como os rapazes. Ela foi com um grupo lá da terra a um torneio, gostou e acabou por ficar.Viu logo que ela tinha jeito para a marcha atlética?Ao contrário de alguns colegas meus treinadores, eu dava todas as disciplinas do atletismo, incluindo a marcha. Um dia houve um inter-associações e o José Dias (seleccionador distrital) disse-me para arranjar uma miúda. A Susana foi porque nós tínhamos aí uma atleta que na altura tinha melhores resultados que ela. Então decidimos que ia a Sandra à corrida e a Susana à marcha. Ela chegou lá com uma habilidade fantástica e ficou logo bem classificada. Depois fomos aos nacionais de juniores e mesmo com 14 anos ela foi das melhores.E ela gostava da marcha?Gostava mais de correr. De início, para a convencer, até fazíamos corridas de Inverno e a partir de Março íamos para a marcha. Claro que depois os resultados fizeram-na apostar na marcha.Os bons resultados que ela obteve retiraram-lhe tempo para outros atletas?Claro. Nos anos de 89-90 cheguei a ter 50 atletas a treinar ao mesmo tempo mas com o aparecimento da Susana houve um lote de atletas que começou a ter mais gosto pela marcha e a especializar-se nessa área. Eu tive que correr atrás. Se tenho uma atleta de nível mundial, tenho de aprender o mais que puder para lhe poder ensinar. Nunca fui defensor que os atletas começam connosco e depois mandamo-los para o Sporting ou o Benfica. Só mandamos se não tivermos aqui condições. O que eu defendo é que lhes dêmos aqui condições de trabalho a todos os níveis, incluindo o nível técnico.Quando é que percebeu que tinha de optar?Há um momento em que nós começamos a fazer estágios de altitude no estrangeiro, durante três semanas, e eu começo a verificar que cada vez tenho menos tempo para os outros. Então, dentro do clube, começo a convidar outros treinadores, que começam a ficar ligados a outras disciplinas. Porque eu não posso estar ligado a atletas e depois ir-me embora e deixá-los a treinar sozinho. O que também comecei a fazer foi a levar alguns comigo quando ia para estágio com a Susana. Um dia levava os irmãos Vieira, outro a Inês Henriques e a Vera Santos.Já viu muita gente com qualidade ficar pelo caminho?Até um determinado nível, enquanto andam aqui a estudar, é fácil nós chegarmos lá com eles. Quando vão estudar para fora ou trabalhar é muito mais complicado. E aí ou são atletas muito bons, que os leva a manter-se em actividade, ou acabam por desistir ou fazer do atletismo uma brincadeira.Aceita isso com resignação ou fica frustrado por o nosso país não dar mais apoio aos atletas?Essa é a nossa luta. Ainda vivemos num país em que se pensa que o campeão aparece porque tem talento e que não é fruto de um trabalho diário e sistemático de todos os dias. Não há nada mais errado. Ninguém é campeão só porque tem talento. Tem de haver um trabalho de vários anos seguidos para atingir um resultado. E isso exige uma segurança na pessoa que se não houver não há hipótese. Veja o exemplo dos meus dois filhos. Quando eles perceberam, e eu também, que não eram atletas olímpicos, o atletismo passou para segundo lugar, para uma brincadeira e acabou. É por isso que o distrito de Santarém já teve centenas de atletas promissores e mantém-se apenas o Rui Silva, que ganha muito dinheiro, o Carlos Calado, que está na fase terminal, a Susana e pouco mais.Isso desmotiva-o?Como treinador, sinto essa angústia e esse desejo dos jovens que se querem afirmar e que depois perguntam como fazer para viver só do atletismo. Eu tento que outras pessoas nos ajudem nesse aspecto mas não é fácil. Em Rio Maior, por exemplo, existe um grande apoio em termos de infra-estruturas mas falta o resto. Estamos a falar de que tipo de apoio? Dinheiro?Eu acho que um atleta que vai aos Jogos Olímpicos deve ser apoiado de tal forma que não esteja preocupado com coisas como as compras ao supermercado, percebe? Acho muito bem que a Susana tenha o apoio que tem em Rio Maior, porque é justo, mas com os outros já não funciona assim. E essa batalha eu ainda não consegui ganhar. Não consigo convencer as pessoas da importância que tem esse apoio. E dou-lhe um exemplo. O Paulo Ferreira é um jovem de Rio Maior que se destacou na velocidade e foi campeão nacional dos 400 metros. Há três anos ou quatro o FC Porto ofereceu-lhe quase uma ninharia e ele foi-se embora porque não tínhamos dinheiro para lhe dar. Este ano mudou para o Benfica mas continua a treinar todos os dias aqui na pista. E há mais. A Vera Santos é internacional, já ganhou duas medalhas e foi para o JOMA porque o Clube de Natação não lhe podia dar mais.A Susana Feitor é dos poucos casos que conseguiu resistir…A Susana está em Rio Maior porque há uma empresa que é as Carnes Nobre que apostou nela desde miúda, já lá vão 16 anos. E depois teve o apoio da câmara, não só institucional, porque esse, tenho de ser justo e existe para todos, mas financeiro, que é essencial. Mas eu não me estou a queixar de Rio Maior, que é dos sítios que melhor organizado está a nível desportivo. Há outros locais bem piores. Tenho colegas meus treinadores que nem sequer são dispensados do trabalho. A Câmara de Rio Maior, que é a minha entidade patronal, dispensa-me sempre que preciso, o que é uma grande vantagem que os meus atletas têm.Ao longo de todos estes anos como treinador há atletas que tenha tido pena por eles terem desistido?Vários. Tenho pena de todos os que abandonam porque tenho este “bichinho” pelo atletismo e há uma coisa que me marca muito. Quando nós acabamos uma época há sempre dois meses de férias. Em Setembro, quando regressamos, há muitos que já não voltam, o que me deixa triste.Costuma ir atrás deles?Uma das razões que levou ao êxito que tive é porque eu os ia chamar a casa e se eles não tivessem transporte para regressar ia lá pô-los. Para muitos fui mais que um treinador. Era pai, irmão, tudo e mais alguma coisa. Mesmo assim havia alguns que depois de algum tempo não queriam continuar e outros que tinham de abandonar mesmo. E nesse aspecto há alguns que abandonaram a modalidade e que tinham condições excepcionais.Recorda-se de algum em especial?Havia um miúdo no Outeiro da Cortiçada (Rio Maior), o Gonçalo Montez, que podia ter sido um atleta excepcional. Chegou a competir com o Rui Silva e não era inferior a ele. Um dia veio ter comigo e disse que tinha gostado muito de treinar comigo mas que ia para o futebol. Foi, apesar de não ter jeito nenhum para jogar à bola. Recordo-me também de dois jovens da marcha. O Pedro Veríssimo, que hoje podia ser o melhor atleta português de 50 quilómetros mas não tinha cabeça nenhuma, e a Isilda Jorge, que também podia ter sido uma grande atleta mas não tinha uma grande vocação para correr.

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