uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

“Mais importante que as medalhas é a forma de ser da pessoa”

Avesso a populismos entende o desporto como uma escola de virtudes
Muitas vezes quando o atleta tem sucesso o papel do treinador acaba por ser esquecido. Tem sentido isso?Não. Sempre me senti recompensado quanto mais não fosse pelos próprios atletas e a minha maneira de ser faz com que não me sinta bem quando as atenções ficam centradas sobre mim. Gosto de trabalhar e depois sentir a gratificação interior de ver que trabalhámos bem.Ainda assim, nunca se sentiu injustiçado?A única coisa que me desgosta e que me dói é a falsidade das pessoas. Mesmo entre os atletas às vezes há situações que me deixam triste, pelas invejas e não só. Para mim, num atleta, muito mais importante que as medalhas que ganha, é a forma como a pessoa é. Não concebo um atleta de alto nível que depois não seja um exemplo não só desportivo mas também humano. Não entendo o desporto se não for uma escola de virtudes no sentido de saber ganhar e saber perder. Não fico chateado quando bato a uma porta de uma pessoa com responsabilidades que me diz que não. Aceito e parto para outra. Agora quando a pessoa nem diz nem que não nem que sim e depois acabamos por ficar naquela expectativa que não se concretiza, ai fico muito desiludido.Os atletas, mesmo os que desistem, ficam seus amigos?A maior parte sim mas também tenho algumas situações contrárias. São as que me doem mais. Quando o próprio atleta a que nós dedicámos quase uma vida depois nos trata de forma injusta não é fácil. A vida vai-nos ensinando algumas coisas mas é sempre triste quando isso acontece.E dos pais, tem sentido reconhecimento pela ajuda que dá aos filhos?A maior parte dos pais não quer saber. Entrega os filhos ao atletismo e enquanto eles lá estão ficam descansados. Mas já encontrei as duas situações: o pai que vai lá e que depois até não ajuda nada porque acaba por ser maléfico para o miúdo, que não se sente à vontade, e o outro que colabora e ajuda. Mas a relação com os pais nunca foi um problema para mim. O que me chateia é quando não são compreensivos e os castigam no atletismo quando têm más notas na escola.Alguma vez um atleta seu foi tentado para de dopar?Eu tento introduzir determinados valores nos meus atletas e quem não os quiser aceitar nem sequer está comigo. O desporto passa por tentarmos ser cada vez melhores mas com trabalho. Não me sentiria bem ao saber que ganhei qualquer coisa de forma desonesta, seja no desporto ou na vida particular. Felizmente, dentro do meu grupo nunca ouvi alguma sugestão nesse sentido.Nunca lhe apeteceu sair de Rio Maior e ir experimentar outros ares e treinar outros clubes?Normalmente quando tenho um projecto luto por ele até ao momento em que vir que não tenho mais condições. Fui atleta e treinador da Casa do Povo de Rio Maior durante 20 anos, estou no clube de natação desde o seu início e enquanto acreditar neste projecto nunca irei sair, seja qual for o convite que receba. Sendo eu o mentor deste projecto, só aceitaria sair se ele morresse.Mas já teve convites para sair?Os treinadores de atletismo não têm muitos convites para irem para outras equipas. Há um estudo que indica que 90 por cento dos treinadores de atletismo trabalha por carolice e não recebe qualquer vencimento. Cheguei a ter no passado situações para ir com a Susana para outro lado mas nunca quisemos. Lembro-me de uma vez o ex-presidente do Sporting, Sousa Cintra, ter chegado ao pé de mim e dizer para pedirmos o que quiséssemos, mas dissemos que ficávamos com o amigo Silvino Sequeira em Rio Maior e ele não insistiu mais.O que recorda das suas muitas viagens que já fez pelo mundo?Quando vou aos outros países procuro conhecer um pouco não daquilo que a televisão nos mostra mas do que é mesmo o viver das pessoas. Em vez de sair à noite, costumo sair de manhã e vou ver como é que as pessoas vivem e trabalham. Foi assim que percebi porque é que há países ricos e países pobres. A forma das pessoas viverem é que faz a riqueza ou a pobreza dos países.Há alguma corrida de que se recorde particularmente?Quando é no princípio tudo é marcante para nós e por isso recordo-me da primeira vez em que a Susana foi campeã do mundo de juniores, em 1990, na Bulgária, até pela surpresa que foi.Marcou-o mais do que a medalha nos últimos Jogos Olímpicos?Todas as medalhas são importantes e todo o momento tem o seu grau de intensidade. A diferença é que no princípio, pela novidade, era uma sensação que nem consigo explicar. Hoje a experiência é outra e já percebo que aquilo é fruto de muito trabalho.E qual é o pior momento desportivo que viveu?Sem dúvida nenhuma que foi o que se passou em 1992, nos mundiais de juniores, em Seul. Eu fazia 44 anos nesse dia e a Susana a duas voltas do fim ia a discutir o primeiro lugar e a medalha de ouro e no espaço de uma volta levou três faltas e acabou desqualificada. Foi uma tristeza muito grande. Ela vinha a discutir o primeiro lugar com uma chinesa e a terceira vinha a mais de 200 metros.Sentiu que foi injustiça?Na marcha tenho sempre dificuldade em perceber se é justo ou injusto. Tanto para os meus atletas como para os outros. Sinto que a diferença entre ganhar uma medalha e uma desqualificação é uma linha tão ténue que muitas vezes não sabemos onde é que está.O que é que lhe falta conquistar para ser um treinador realizado?Neste momento vivo cada dia procurando fazer aquilo que sei da melhor maneira que posso e já não vivo tanto os sonhos ou as ilusões. Digamos que me sinto realizado por uma lado e frustrado pelo outro. Aceito a vida como ela é, continuo a ter prazer em aqui estar mas sinto que sozinhos – eu e o atleta – não conseguimos lá chegar. A engrenagem que nos rodeia é algo que depende muito de outras pessoas e outras entidades e nem sempre conseguimos pôr os nossos objectivos em prática. Daí alguma frustração que não escondo.

Mais Notícias

    A carregar...