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Viver para os bombeiros

Miguel Cardia foi o mais jovem comandante do país com 25 anos

Assume-se como um homem precoce. Miguel Duarte Cardia, 35 anos, comandante dos Bombeiros Voluntários de Samora Correia , coordenador da protecção civil municipal e vereador da Câmara de Benavente é um estudioso da matéria que domina como poucos. Tem uma história de vida marcada pelo espírito de missão que o levou a formar corpos de bombeiros em Timor e Cabo Verde.

Miguel Cardia nasceu para os bombeiros aos 15 anos e cresceu com o corpo de bombeiros da terra que o adoptou depois de uma infância saudável na Serra da Estrela.Foi adjunto de comando com 20 anos e chegou à liderança dos bombeiros cinco anos depois. Aos 25 anos, foi o mais jovem comandante de um país com cerca de 460 corpos de Bombeiros. “Alguns comandantes olhavam para mim como um miúdo”, recorda. Com 30 anos foi comandante operacional da zona Santarém Ribeirinho e exerceu durante dois anos funções de comandante de serviço no centro de coordenação operacional nacional do Serviço Nacional de Bombeiros. Quem olha para o corpo franzino com 1,70m e 60 quilos não imagina a força deste homem que há 20 anos vive para os bombeiros e tem liderado inúmeras operações de socorro nas estradas, em fábricas consumidas pelas chamas e na floresta.A sua bandeira é a formação. E o património que mais valoriza é o humano. Não é licenciado porque quando acabou o 12º ano não havia nenhuma licenciatura na área dos bombeiros ou da protecção civil. Há pouco tempo fez uma pós graduação em Gestão de Protecção Civil na Universidade Independente e colecciona diplomas de cursos e acções de formação em Portugal e Espanha. Os especialistas dizem que é um dos comandantes mais bem preparados. Humildemente, diz que ainda tem muito para aprender. Nesta entrevista, que foi adiada durante dois anos por vontade do comandante que não gosta de se expor, Miguel Cardia considera que os bombeiros portugueses estão ao melhor nível, ao contrário dos governantes que não têm coragem de mudar e continuam a adiar as reformas imprescindíveis para o sector.Sempre que há tragédia na floresta, as pessoas apontam o dedo aos bombeiros e põem em causa a sua eficácia e formação. O que pensa dos bombeiros portugueses?Os nossos bombeiros estão entre os melhores e têm um sentido de missão muito forte. Em Portugal temos a tendência para desvalorizar o lado bom e só apontar os pequenos defeitos. Há um défice de auto-estima generalizado que também se sente nas críticas injustas aos bombeiros. Temos excelentes bombeiros. Só nos falta paz e tranquilidade no sector. Precisamos que nos dêem condições para termos uma estrutura à altura das necessidades e da realidade do país.Essas condições passam pela profissionalização dos bombeiros?Há cerca de sete anos que defendo a necessidade de preservarmos e protegermos o voluntariado, senão torna-se uma espécie em vias de extinção. As exigências dos nossos dias não se compadecem com a disponibilidade do voluntariado.A solução é a profissionalização?Claro que sim. Temos de profissionalizar a primeira intervenção. Os bombeiros têm dificuldade em responder ao toque da sirene porque quem contrata um trabalhador é porque precisa dele e não pode estar a dispensá-lo com frequência.O Governo preparou novidades com um novo estatuto social do bombeiro e compensações para as empresas que empregam bombeiros.É insuficiente e é mais uma fuga para a frente. Tem-se tentado meter água na fervura e não se pega o toiro pelos cornos, como se faz aqui no Ribatejo. Precisamos de uma reforma de fundo e não é o que está previsto. Os sucessivos governos não têm tido coragem política para mudar e as nossas estruturas representativas não têm exercido a pressão necessária e têm andado de costas voltadas. O que tem de mudar?Os bombeiros não podem continuar a viver da caridade. É preciso criar condições para acabar com o critério da subsidio-dependência e do favoritismo . Quem tem amigos no Governo e nos órgãos de decisão recebe mais que quem não tem. Tem de haver um modelo claro de financiamento assente na tipificação dos corpos de bombeiros e que seja actualizado em função das características de cada corpo de bombeiros e de vários factores inerentes à sua área de intervenção. Quem gere uma associação de bombeiros tem de saber com o que conta.Inicialmente, até vestir a farda de passeio ou de gala nos bombeiros era um tormento por causa da gravata. Depois habituei-me com naturalidade, e hoje, sempre que as situações obrigam, não tenho qualquer problema em vestir o fato e a gravataE qual é o papel das autarquias?Alguns municípios continuam a apoiar os corpos de bombeiros como apoiam a banda de música e o folclore. Felizmente, Benavente é exemplar no apoio aos corpos de bombeiros. É conhecida a sensibilidade que desde sempre o presidente António Ganhão tem tido para apoiar os bombeiros, substituindo, muitas vezes, a administração central.Os bombeiros não podem estar dependentes da sensibilidade dos eleitos, tem de haver um modelo de financiamento com regras e que permita saber com o que se pode contar.A maioria das corporações ainda vende rifas e faz peditórios para angariar fundos. Em Samora Correia acabou com isso?Acabei, porque senti a necessidade de dignificar os nossos bombeiros. E isso deu excelentes resultados na imagem que a comunidade tem e deve ter dos bombeiros - os técnicos de emergência e socorro formados e capacitados para resolverem de forma competente as situações de emergência - e não a imagem dos pedintes a quem ninguém vai reconhecer autoridade técnica. As associações têm que ter outros mecanismos de financiamento. Quem não o conhece bem diz que é um homem autoritário e arrogante?Sei que é essa a primeira imagem que as pessoas têm. Depois, quando me conhecem, percebem que sou uma pessoa bem diferente.Como é que se define?Essencialmente humilde, aprendiz e muito discreto. Não gosto nada de dar nas vistas. Não sou anti-social, mas sou um pouco anti-herói. Julgo que o nosso valor resulta do que fazemos e não do que dizemos. Devem ser os outros a reconhecê-lo. Quem o é não precisa de o mostrar, é-o naturalmente.É comandante de bombeiros e vereador e continua a usar calças de ganga, ténis e roupas práticas...É assim que me sinto bem. Inicialmente, até vestir a farda de passeio ou de gala nos bombeiros era um tormento por causa da gravata. Depois habituei-me com naturalidade, e hoje, sempre que as situações obrigam, não tenho qualquer problema em vestir o fato e a gravata. No entanto, continuo a considerar que não são os fatos e as gravatas que resolvem os problemas…E esse penteado tipo legião estrangeira...É um corte com pente três em cima e pente zero de lado e atrás. É prático, confortável, higiénico e económico porque gasto menos dinheiro em água e champô... (risos) e todos os dias posso mudar de penteado…Nunca foi visto como um rapazito pelos mais velhos?Num meio em que todos os comandantes eram, no mínimo, dez ou quinze anos mais velhos que eu, era constante esse tipo de tratamento, mas quase sempre de forma positiva e com o sentido de me inserirem no ambiente deles…Lembro-me que a primeira vez que conversei com o saudoso comandante Batata Correia, que considero uma referência dos bombeiros do distrito e do país, ele ficou com uma impressão pouco positiva acerca de mim. Uns anos mais tarde, já na fase final da sua vida, confessou-me que tinha sido a partir dessa conversa que tinha mudado a opinião do rapazito que tinha a mania que percebia de bombeiros.Nelson Silva Lopes

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