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Carlos Lopes, atleta invisual, psicólogo, um campeão dentro e fora da pista

Carlos Lopes, atleta invisual, psicólogo, um campeão dentro e fora da pista

Na corrida da vida, o campeão Carlos Lopes encontrou múltiplas barreiras, mas nunca se deu por vencido. Aos 18 anos, perdeu o que restava da visão mas não se rendeu à fatalidade. Saltou a barreira e continuou a correr para alcançar os sonhos de criança: ser campeão. Hoje é um dos melhores atletas paralímpicos do mundo, soma medalhas e já perdeu a conta às vezes que fez subir a bandeira portuguesa nos mastros internacionais. Nesta entrevista revela ser um campeão dentro e fora da pista. Um homem sereno e ambicioso que apoia anualmente 250 alunos na escolha das suas opções escolares e profissionais.

O problema de visão do Carlos Lopes é congénito, mas perdeu a visão lentamente. Como foi o momento em que assumiu a cegueira?Eu já não via bem desde criança. Para mim o momento em que me considero cego foi quando entrei para a faculdade com 18 anos e decidi comprar uma bengala para me ajudar a circular.Por ser uma doença evolutiva, foi mais fácil a adaptação?Julgo que acaba por ser mais difícil, porque vamos sempre adiando. Ainda vejo um bocadinho, ainda vejo um bocadinho e vamos adiando a solução dos problemas. Acabamos por passar por situações muito complicadas.Vivia no Bom Sucesso (Alverca) e estudava em Lisboa, utilizava os transportes públicos…Cheguei a fazer a ligação do Bom Sucesso para Alverca (dois quilómetros) a pé, só a ver as luzes dos candeeiros. Arrisquei muito, às vezes não media o perigo.Foi nessa altura que decidiu comprar a bengala?Foi. Tinha ido para a faculdade. Ainda andei vários meses sem bengala, mas estava a tornar-se muito complicado. Já não via o caminho. Estava a preocupar-me com coisas que não fazem muito sentido e resolvi adquirir a bengala.Em Alverca já conhecia quase todos os obstáculos. Em Lisboa foi mais complicado?Muito mais. Em Alverca já sabia onde estavam os postes da iluminação, os caixotes do lixo, os bancos e essas coisas todas. Em Alverca tinha o mapa da cidade na minha memória, em Lisboa não era possível.Passou por situações muito caricatas?Ia contra as pessoas, batia contra os postes. E um dia pensei que tinha que mudar.Alguma vez sentiu reacções negativas das pessoas com quem chocava por não se aperceberem da sua cegueira?O problema é que as pessoas não percebiam que eu não via. Houve uma história que me fez comprar a bengala. Ia todos os meses levantar a bolsa ao banco. Dentro da agência estava sempre muito escuro e eu não via muito bem as pessoas. Pisava-as sempre. Uma vez uma senhora disse-me: “mas este gajo é maluco ou quê”. Foi o momento decisivo para comprar a bengala. Sei que gosta de viajar. Como é que um invisual tira prazer das viagens?É uma pergunta que me fazem muitas vezes, até os meus amigos. Eu digo-lhes: se vocês acham que eu não tenho o direito de viajar, também acham que eu não tenho o direito de viver. O que perco nas minhas viagens é o que perco no meu dia a dia.Se faz confusão que eu vá viajar, também deve fazer que eu viva.Cada viagem é um desafio?Quando faço uma viagem capto muitas sensações. Consigo perfeitamente distinguir Paris de Madrid, Amesterdão, Roma ou Lisboa. Há características diferentes na sonoridade, no movimento, nas pessoas e até na estrutura da cidade.Em Portugal há ainda demasiadas barreiras arquitectónicas que vos dificultam a vida?Mais uma vez fez-se a legislação e não se implementou. Sinceramente não sinto tanto as barreiras porque tenho uma cadela guia excelente, só as sinto quando ela está doente e tenho de recorrer à bengala. Esses dias para mim são complicadíssimos.O que falta para eliminar essas barreiras?Acima de tudo falta civismo. Porque os carros em cima do passeio são uma barreira criada por quem lá estaciona. Na Suécia conseguimos caminhar um dia inteiro sem estar preocupados com os carros, os postes e os caixotes do lixo.Gosta de viver em Alverca?Gosto muito desta zona e gosto das pessoas. A cidade precisa de um jardim onde se possa correr, andar de bicicleta ou de patins. Não há espaço para o lazer e para as pessoas conviverem. Depois há o trânsito que retira qualidade de vida. É preciso retirar o trânsito da cidade e criar estacionamento.Carlos Lopes foi mandatário da lista de Maria da Luz Rosinha para a Câmara de Vila Franca…Aceitei dar o meu contributo porque acreditei na equipa e confio que pode fazer um bom trabalho. Sei que as câmaras estão com grandes dificuldades e não é possível fazer tudo.No futuro admite vir a participar na vida política?Não me vejo a ir por aí… Um ano e meio de trabalho para chegar ao ouroQuando é que descobriu a vocação para o desporto?Sempre gostei muito de praticar desporto. Quando era miúdo corria, saltava, andava de bicicleta. Gosto muito da natureza, da praia, da montanha e do campo. Nunca pensei que seria atleta de alta competição. Quando me disseram que era possível fiquei muito satisfeito e comecei a treinar.Na altura imaginou ser um dos melhores do mundo?Comecei a treinar com uma perspectiva muito ambiciosa e com objectivos bem definidos. Comecei a correr em Novembro de 1988 e treinava aos sábados. Um mês depois treinava duas vezes por semana e, passados dois meses, estava a treinar todos os dias. Encarei as coisas duma forma muito séria. Porque é que optou pelo atletismo?É muito agradável desafiarmos as nossas capacidades e sentirmos que estamos a correr com altas velocidades e com objectivos bem definidos. Depois é o convívio que proporciona. O atletismo é uma modalidade que nos envolve com os outros.Jamais pensaria fazer natação que é uma modalidade muito isolada.Quando é que surge a orientação para a alta competição?A primeira competição internacional para atletas portadores de deficiência foi em 1987, no Campeonato da Europa em Moscovo. Eu sabia que em 1989 ia realizar-se outro Europeu na Suiça e comecei a sonhar…Foi um objectivo alcançado?Foi muito bom. Nunca tinha ido à Suiça, nunca tinha saído de Portugal, tinha ido só a Espanha. Foi um estímulo muito grande para mim e para toda a selecção nacional e alcançámos a primeira medalha para o atletismo paralímpico. Ganhei os 800 metros A partir daí começamos a ter competições todos os anos.E em 1990 conquista três medalhas de ouro no Campeonato do Mundo da Holanda…Foi muito bom. Ganhei os 200, 400 e 800 metros, um ano e meio depois de ter começado a treinar. Foi um momento muito forte.Muita coisa mudou, até na mentalidade portuguesa.O atletismo para portadores de deficiência passou a ser visto de outra forma e percebeu-se que podíamos competir com os melhores. O objectivo inicial era promover o desporto de lazer e de reabilitação, mas houve quem acreditasse que podíamos estar ao mais alto nível. O campeonato de Barcelona em 2002 foi a consolidação desse projecto?As pessoas perceberam uma nova realidade e o desporto para deficientes passou a ser encarado noutras perspectivas para além da inclusão e da reabilitação. Começou a perceber-se que os atletas com deficiência também podiam fazer alta competição.A comunicação social também ajudou a abrir esses horizontes?Sem dúvida. Houve uma boa divulgação dos nossos êxitos. As pessoas tinham uma visão muito redutora do desporto paralímpico e alargaram-na. Inicialmente, passou a ideia de que ganhávamos porque aquilo era tudo muito fácil e não era preciso trabalhar muito para lá chegar.Essa ideia mudou?Mudou muito. As pessoas perceberam que para sermos os melhores temos de trabalhar muito e que somos sujeitos a grandes esforços para alcançar as medalhas. Sou muitas vezes abordado na rua por pessoas anónimas que me felicitam. Hoje há um carinho muito grande e respeito pelo desporto paralímpico. Só tenho pena que a nível institucional, as coisas não funcionem tão bem. É preciso pôr em prática tudo o que está consagrado nos diplomas e nos contratos-programa.
Carlos Lopes, atleta invisual, psicólogo, um campeão dentro e fora da pista

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