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Heróis são os que não desistem da vida

Heróis são os que não desistem da vida

Um homem de cabelos brancos a tentar levantar outro homem de cabelos brancos que está sentado no alcatrão. Duas velhas árvores, com raízes de veias grossas nas costas das mãos, abanadas pelo vento dos carros. Ninguém liga a velhos nem a árvores. Muito menos quando ocupam uma faixa de rodagem. Paramos a carrinha. Dois jornalistas e um bom samaritano extenuado tentando afastar o senhor Pantófe do bafo assassino dos condutores apressados. Transpiramos juntos naquele dia de Verão. O corpo do homem pesado como um cavalo morto. As muletas inúteis no chão. Não vou falar de desgraças, prometo. Hoje O MIRANTE faz anos. Dezanove anos. Não sou maluco ao ponto de vir para aqui maçar-vos com tragédias. Há muito tempo que ando para contar a história de dois heróis desconhecidos. Calhou ser hoje. O senhor Pantófe já vocês conhecem. Vive na Tapada, na margem esquerda do Tejo, junto à ponte D. Luís. Costuma estar sentado no banco de alumínio da paragem à espera do autocarro. Mais umas linhas e já vos conto o resto. O outro herói chamava-se Manuel Graça. Perdão, chama-se Manuel Graça porque um homem só morre quando desaparecerem todos os que o conheceram e eu ainda cá estou. Eu e outros que dele gostavam. As batalhas que me fascinam não aparecem no canal história. O senhor Graça veio com a bicicleta pela mão em passinhos miúdos e arrastados de trombose e ficou parado na berma da avenida da Estação, no Entroncamento. Avenida José Eduardo Vítor das Neves, corrigir-me-á algum elemento da comissão municipal de toponímia que me esteja a ler. Vinte e tal anos e parece que foi ontem. Durante mais de três horas, à torreira do sol, o herói de que vos falo tentou montar a velha pasteleira. Quando passava alguém por perto, aprumava-se, tirava o boné da cabeça e fazia um cumprimento. Depois voltava à tarefa impossível. A perna direita devia pesar-lhe como chumbo. Não se afastava do solo mais que uma mão travessa. A bicicleta oscilava a cada nova tentativa. Nunca mais me vou esquecer do ar altivo e digno com que passou por mim a caminho de casa arrastando os pés e a bicicleta. Um homem não se resigna à sua sorte ouvi-o dizer, embora ele não tenha dito uma palavra.O senhor Pantófe não se chama Pantófe, mas é assim que é conhecido. José Pantófe. No dia em que caiu na estrada ia a caminho do seu campo de batalha. Contra tudo e contra todos insiste em apanhar o autocarro para Almeirim. Os degraus são altos, o motorista não pode esperar os longos minutos que ele demoraria a subi-los. Não há quem tenha força suficiente para o içar. Duas senhoras foram ver dele. Fingi que lhe estava a limpar o suor com um lenço de papel e sequei-lhe duas lágrimas. Suspeitei que ele não gostaria que vissem aquela água salgada a correr pelos sulcos que os anos lhe cavaram na cara. Um homem chora mas o pudor impede-o de exibir lágrimas. Sei que ele vai continuar a tentar apanhar o autocarro até ao fim da vida. Mesmo que o prendam em casa o pensamento voará livre e lesto até à paragem. Heróis são os que não desistem da vida.Alberto Bastos
Heróis são os que não desistem da vida

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