António José Salgueira é o último sapateiro de São José da Lamarosa
Começou aos 13 anos a aprender a arte
O sapateiro fez, durante anos, muito calçado para ranchos folclóricos, como os da Lamarosa, Fajarda, Parreira e Almeirim.
No número um do largo S. José, em frente à igreja e com vista para o centro da localidade, António José Salgueira tem a sua oficina de sapateiro. A única sobrevivente da freguesia de S. José da Lamarosa e uma das poucas que restam do concelho de Coruche. Na pequena sala de oficina de sapateiro, que não terá mais de cinco metros quadrados, o ambiente diz tudo sobre a actividade que ali se desenvolve. As paredes em volta estão forradas de prateleiras. Palmilhas, graxas, pregos e muitos outros utensílios enchem cada espaço. Os típicos calendários de parede das casas tradicionais não faltam. Do Benfica, clube de que é adepto, na natureza verde e da natureza humana, com as habituais meninas desnudadas, mas sem roçar o escândalo.Em cima da mesa de madeira escurecida pelos mais de 45 anos de uso estão os utensílios que ajudam António José Salgueira a criar o calçado. O paca para desbastar e cortar. A sela para dar forma. E duas turqueses, uma para puxar pela forma do sapato, outra para arrancar e ajustar a pele. O puxete, peça de madeira em forma de osso, que o sapateiro garante ter mais de 200 anos, puxa o lustro do sapato e alisa a sola no rebordo com uma das pontas arredondada e lisa. Pregos, protectores de biqueira e para saltos, estão sempre à mão.António Salgueira foi “empurrado” pelos pais aos 13 anos para ser aprendiz de sapateiro, com um profissional de Montargil que já exercia na terra. “Todos iam para o trabalho no campo e os meus pais não me auguravam grande futuro nesse caminho”, recorda. Até aos 20 anos aprimorou a arte, altura em que se lançou sozinho com um negócio. A casa do senhor Salgueira teve muito movimento. Clientela proveniente do concelho de Coruche e Almeirim, passando por Santarém e até de Lisboa. Nos anos 50 marcaram-se novas tendências e não apenas pelas elites. “Nessa época os saltos altos tiveram um grande incremento. E, ao contrário do que se possa pensar, não apenas procurados pelas senhoras mais abastadas, mas também pelas de menos posses que procuravam a novidade”, recorda. O sapateiro fez, durante anos, muito calçado para ranchos folclóricos, da Lamarosa, Fajarda, Parreira, Almeirim.A cerca de um mês de completar 68 anos, António José Salgueira apenas mantém a casa aberta para fazer trabalhos ocasionais. Acabaram os grandes negócios. A procura é muito limitada. “As pessoas compram barato e voltam a comprar quando o calçado se estraga. Para os pequenos arranjos, como colocação de tacões, meias solas, têm tudo à boca do metro e de supermercados”, analisa. O sapateiro de S. José da Lamarosa trabalha com materiais nobres. Cabedal e pele curtida, tudo de origem animal. De vitela para os cabedais e de gado mais velho destinado às solas. O mesmo se aplica às palmilhas. A pele animal tem muito mais qualidade e resistência. As fibras actualmente muito usadas no calçado enrijecem com o tempo frio e amolecem com o calor, conta quem sabe. Para fazer um par de botas António Salgueira começa por escolher a pele e limita-a ao tamanho que necessita. Corta depois o formato e puxa-o à forma. A sola é colocada e cozida à mão. A aplicação do salto e tacão é o último passo, antes do calçado passar pela máquina de acabamentos. Um engenho verde grande, comprado a um vendedor nortenho há mais de 20 anos, onde grosa e puxa o lustro. Um par de botas leva cerca de três dias a fazer. A qualidade reflecte-se no preço e um par de botas que numa casa de comércio custe 40 euros, no sapateiro, com toda a mão-de-obra, tempo disponibilizado e materiais nobres, pode ascender a 100 euros. Actualmente o sapateiro faz apenas alguns trabalhos que vão surgindo. A profissão teve os seus tempos áureos, quando chegou a empregar duas pessoas. Os mais novos, diz, não estão interessados em seguir a arte.As histórias na oficina também têm a marca de uma época. Como a ocasião em que António José Salgueira se deparou com peças em ouro metidas no calçado de algumas clientes que recorriam aos seus serviços. “Nesses tempos as senhoras costumavam guardar peças em ouro, como fios, colares, pulseiras dentro dos sapatos e muitas vezes esqueciam-se de os tirar quando vinham para arranjo”, recorda o sapateiro.Menos inocentemente os recantos escuros do interior do calçado foram usados para a troca de mensagens. António Salgueira lembra a esboçar um sorriso malandro da época em que tinha à volta de 20 anos e escrevia bilhetes a algumas senhoras para saber da sua disponibilidade. Após as primeiras mensagens as conversas já desenvolviam com outro à vontade na loja. Outros tempos…
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