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Salazar e o poder local

Francisco Moita Flores
À primeira vista, o concurso de Maria Elisa sobre os grandes portugueses vale o que vale. Um formato que procura a interactividade com os espectadores e que tem como pretexto evocar algumas figuras da história portuguesa. Teria sido um bom pretexto para aproximar muitos alunos de grandes momentos do nosso passado colectivo e da nossa literatura. Em Santarém procurámos fazer esse jogo e, julgo, com alguns resultados.Seja como for, para quem conhece a História de Portugal, quem a avalia com distância crítica, longe dos juízos emocionados, não pode deixar de causar estranheza que Salazar vença este concurso já que não se lhe conhece a marca de futuro, de glória imortal que Afonso Henriques ou D. João II, Camões ou Fernando Pessoa deixaram num país que desde o início foi labrego, atrasado e ignorante. A ditadura de Salazar, durante 48 anos, não teve no horizonte o esforço para romper com este Portugal velho, medroso e crédulo. O Portugal dos caciques e dos medos. Pelo contrário. Afastou-o da universalidade, basta lembrarmo-nos do slogan ‘orgulhosamente sós’, afastou-o da fome de futuro que, no pós-guerra, sacudia toda a Europa, e basta que se lembre a industrialização tardia. Não compreendeu a poderosa força da economia global, que então desabrochava, e remeteu-nos para um gueto cujas consequências ainda hoje são explicativas do nosso atraso. Recusou o amplo entendimento dos valores dos direitos humanos, insistindo na repressão e prisão e, em alguns casos, assassinatos daqueles que pensavam de maneira diferente. O prolongamento por meio século da ditadura foi um terrível desastre para o país e só assim se explica a explosão de alegria no 25 de Abril.O regime democrático nasceu, pois, sob o signo dos sonhos. De recuperar o atraso, de se afirmar no quadro do respeito das outras nações, de se afirmar pelo pensamento, pela cultura, pela competividade, pela exaltação dos direitos de cidadania, pela universalidade. Neste contexto, sobretudo o poder local democrático, em três décadas mudou o país. A electricidade chegou a todo o lado, a água canalizada, o saneamento básico, a melhoria das escolas, o embelezamento das vilas e cidades. Um pouco por todo o país despertou sobre os escombros de uma terra velha, obsessiva, hesitante o poder do médico e a magia das antigas bruxas.Porém, o regime democrático não conseguiu libertar-se das velhas grilhetas que prendiam Portugal às velhas âncoras da obscuridade, da ignorância, da insensibilidade. Aos poucos, regressaram os caciques dos velhos tempos, agora com roupetas democratas, o discurso político estereotipou-se, o poder tornou-se clientelar e caceteiro, depois de uma primeira vaga de gente lúcida, bem ancorada nos valores democráticos, surgiram novos actores sem qualidade, já contaminados pela querela oportunista, esquecidos do povo e das grandes questões nacionais e regionais e, paulatinamente, instalou-se a democracia do privilégio, a luta política perdeu a nobreza das ideias para se transformar no motivo para a realização da ambição pessoal e para o carreirismo político. O discurso político resume-se a taxas e défices, a golpaças para apropriação do poder entre facções, a lugares comuns, à indiferença quanto a questões estruturantes e eternamente adiadas. Não admira o crescente desprestígio da democracia. Não admira o desprezo da massa anónima que vota, quer em eleições quer em concursos televisivos, em protesto e não a favor e não admira, pois, que quando é apresentada uma memória recente, como é Salazar, votar nesta figura pouco mais que vulgar, seja outra vez a manifestação contra a mediocridade reinante.O esforço que temos desenvolvido em Santarém é exactamente por há muito tempo termos percebido que é urgente refundar o direito ao sonho e à esperança. Aí está o concurso que conferiu o primeiro lugar a Salazar para se perceber o caminho que falta andar até conquistarmos o tempo da confiança nos valores democráticos, da solidariedade e do progresso. Ao menos que o concurso de Maria Elisa deixe este ensinamento. Não é possível em nome da esperança democrática reduzir a política a um covil de oportunismos. Porque uma raiva qualquer, mesmo que se chame Salazar, é o dedo acusador à nossa própria inépcia e indiferença.Francisco Moita Flores

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