Sam Abercromby é um artista australiano que foi arrastado para Portugal por extraordinárias visões
“Já não me preocupo muito em saber se estou a ser compreendido ou não”
Tem sessenta anos, é australiano e está em Portugal há 21. Sam Abercromby chegou até nós guiado por estranhas visões. O seu quartel-general é em Vila do Paço, concelho de Torres Novas. Exprime-se através da pintura, da arquitectura, da música, da cerâmica e da literatura. É aqui que tem o seu bem mais precioso: os amigos. Não quer regressar à Austrália. Sente-se em casa e diz que é tratado pelos portugueses como…mais um.
Quando descobriu que era um artista?Na altura estava a viver em Atenas, na Grécia. Tinha 21 anos. Um dia, não percebo porquê, deu-se um clic. Eu estava a ler e a falar com um francês com quem partilhava a casa. Um costureiro que trabalhava para os cabarets de Atenas. Inesperadamente ele disse: “Sam, tu és um australiano preguiçoso”. Com uma voz arrastada, sarcástica. Aquilo cortou-me o coração. Não percebo porquê mas esfaqueou-me espiritualmente. Ele tinha razão. Eu estava a flutuar sem direcção. Sem objectivos. Lembro-me daquele momento como se fosse agora. O Guy ali a dizer, com um total desprezo: “Tu és um australiano preguiçoso”. O que fez? No dia seguinte comecei a pintar e nunca mais parei. Eu já pintava mas era por brincadeira, entretenimento. A partir daquele momento comecei a pintar ideias que não poderiam ser expressas em qualquer outra linguagem. Pela primeira vez percebi o que era a pintura para mim. Como foram os seus primeiros quadros? Uma sobre a minha mãe, um sobre o meu pai e outro sobre mim. Pintei-os sem ter essa consciência. O do meu pai era um cavalo completamente saudável, mas cortado em bocados, sumindo-se dentro de uma pedra. O segundo era a cabeça de uma gazela a chorar. O terceiro era um auto-retrato meu a esconder a boca e por cima uma lua, contra um fundo azul-escuro. O Guy ficou tão comovido quando viu os quadros que tentou retirar a acusação que me fizera de preguiçoso. E eu não permiti. Disse-lhe que ele não tinha o direito de me retirar aquela força que ele me dera. Ele é que me fez soltar o meu interior. Como foi parar a Atenas? Depois da escola o meu pai conseguiu-me um emprego no Ministério da Educação. Na área da ilustração de livros para as escolas.Foi funcionário público?Ao fim de três semanas fui ter com o meu pai e disse-lhe que não podia continuar ali. Eu tinha 19 anos e fiz cálculos. Só quando tivesse 62 anos teria poder suficiente para modificar alguma coisa naquele departamento. Ia-me enterrar ali vivo. Eles já sabiam como eu era e o chefe de departamento já nem me dava trabalho. Mas tive que cumprir os três meses do contrato. Foram três meses a olhar para a rua através da janela. Não podia levantar-me da cadeira. Quando aquilo acabou fiz uma festa de libertação. Depois o meu pai arranjou-me um emprego numa plataforma petrolífera. Foi aí que ganhei dinheiro para vir para a Europa.Porquê a Europa? Pela arte? Imagina. Eu vinha de uma escola de Arte. A Austrália nessa época tinha 130 anos. Ultra-recente, sem História. Tudo o que estudei era europeu. Fui para Atenas. Fiquei a viver num quarto pequeníssimo na encosta da Acrópole. Eu olhava da casa de banho quando estava na sanita e pela janela, que era apenas um buraco na parede, via a Acrópole. Estava no Paraíso. Estive lá 7 anos. Até 1975. Vivia como um grego. Falava grego. Vivia da pintura?Artisticamente eu era um designer. Trabalhei como desenhador durante uns três anos. Desenhava gravatas, embalagens para sabonetes, para prefumes, etc. Só pintava à noite e aos fins-de-semana.Dava para viver?Fazia também uns trabalhos de tradutor, ensinava inglês e era solicitado para uns certos esquemas. Os gregos eram mestres em contornar as leis. Um estrangeiro que tivesse autorização de residência podia mandar vir o carro sem pagar impostos. Mas havia um buraco na lei. Não era mencionado se a autorização era para um ou mais carros. Cheguei a ter vinte e seis carros em meu nome a circular na cidade. Por cada um recebia cem dólares de comissão. Havia também o caso das escolas de línguas. Elas não podiam legalizar-se se não tivessem ao seu serviço um estrangeiro cuja língua materna fosse o inglês. Eu era o “native-speaker” de quatro escolas de Atenas. Não havia lá mais estrangeiros?Havia mas não tinham autorização de residência.Como conseguiu a autorização de residência rapidamente?Pura sorte. Entrei num café e tropecei, com o meu pé 47, numa cadeira. Pedi desculpa em inglês à senhora que estava lá sentada e ela pediu-me para lhe ensinar inglês. Era a esposa do director do serviço que dava autorizações de residência a estrangeiros. Bom, isso é mais que sorte.E dava-lhe as aulas no carro. O marido era muito ciumento. Ele acreditava que enquanto ela conduzia nada de mal podia acontecer. Mas não havia razão para ciúmes. Não tive nada com a senhora. Ela era uma mulher com garra. Independente. E tratávamo-nos de igual para igual. Gostava muito dela e ela ensinou-me muita coisa sobre a Grécia. Acabei por ser grande amigo daquela família até à morte dela em 1988 e do marido, um ano depois. Saí da Grécia em 1975 mas mantive contacto. Visitei-os quatro ou cinco vezes. A sua relação com a arte começa muito tempo antes, segundo sei.Aos 10 anos. Na altura a minha família vivia em Perth e eu fui estudar para um colégio chamado Soldados por Cristo. Uma escola Wesleyana (religião Metodista). Estive lá 3 anos. A filosofia deles era simples. Cada criança é uma criatura de Deus. Tem um dom especial e um destino especial. A missão do professor é descobrir qual é o dom e o destino de cada criança.O que descobriu o professor?Que o meu dom e o meu destino eram a arte. Descobriu, logo, logo. Depois foi para uma escola de arte. Foi em 1961. Tinha 13 anos e era inocente e ingénuo. O que lhe ensinou a escola? Ensinou-o a ser artista? As escolas ensinam-nos as técnicas e as filosofias. Depois é connosco. O que eu aprendi deu-me a preparação suficiente para poder, mais tarde, exprimir as minhas ideias.
Mais Notícias
A carregar...