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Vila Franca de Xira tem uma “overdose” de tauromaquia

Vila Franca de Xira tem uma “overdose” de tauromaquia

António, o cartoonista que estabelece códigos com os leitores desconhecidos

António, o homem que todas as semanas faz sorrir os leitores do Expresso com o humor requintado do cartoon, tem pena de nunca ter esboçado um desenho infantil. Em criança perdeu um concurso porque o júri não acreditou que fosse o autor da obra. O artista natural de Vila Franca de Xira, que lamenta a pobreza cultural em volta da festa brava, deslumbrou-se cedo com as mulheres e viveu uma juventude atormentada pelo fantasma da guerra colonial a que escapou por pouco. É através da arte que interpreta a realidade à sua volta.

Nasceu em Vila Franca de Xira. Como foi a infância na cidade ribeirinha?Nadei muito naquele rio. Aprendi a nadar na piscina de Alhandra. Tínhamos algumas aventuras no Tejo um bocado irresponsáveis, mas felizmente nunca tiveram consequências más. Também fui muito marcado pelas esperas em Vila Franca e pelo Colete Encarnado. É uma paixão que ainda mantém?Não sou propriamente um aficionado. Mas aprecio uma espera. Sou completamente contra esta guerra contra os toiros. Acho que uma terra como Vila Franca de Xira sem toiros fica assim uma espécie de Moscavide. É pena que isso não envolva outras formas culturais e seja um pouco um gueto. Podiam fazer outras coisas que não fosse só discutir toiros e jogar às cartas...O quê por exemplo?Ver filmes, ler e discutir temas ligados a outras artes que não só à tauromaquia. O facto das pessoas estarem juntas nas tertúlias podia permitir outras coisas. Pelos nomes de algumas tertúlias percebe-se a actividade cultural que lá vai dentro: “Companheiros do balde”, “parras”… Em Espanha há o Hemingway e o Picasso, em Portugal o mundo dos toiros ficou menos defendido. Foi uma pena ter morrido tão cedo o Álvaro Guerra que ajudava a conciliar os toiros com o resto. Há algum analfabetismo à volta da tauromaquia. E um conservadorismo imenso. Espero que mude.Saiu desse conservadorismo cedo para Lisboa…Fui estudar para Lisboa. Ia e vinha. Tinha uma vida muito cheia do lado de cá. E depois aconteceu a atracção da grande cidade por um lado. E aquilo que eu costumo dizer brincando que foi a descoberta do caminho marítimo para o sexo feminino. Foi um período de algum excesso e de algumas descobertas que me afastou de Vila Franca. Respirava-se outro ar em Lisboa…Havia um contraste entre Vila Franca e Lisboa. É uma das coisas mais surpreendentes. Lisboa ficava longe. Vinha todos os dias para Lisboa e Lisboa passou calmamente a integrar o meu quotidiano, mas nessa altura as pessoas de Vila Franca vestiam-se com uma roupa especial para vir a Lisboa. Era um acontecimento.Teve uma juventude feliz.E complexa a partir de determinada altura. Mas muito intensa.Passou pelas normais crises existenciais…Estudei pintura e isso também não ajudava. Não havia grande perspectiva profissional para a minha opção. Isso também levava a alguma tensão familiar. Por outro lado há outros factores que condicionam esse tempo. Como a guerra colonial. Para os jovens dessa altura era uma espécie de fantasma que nos perseguia desde a infância. E que nos limitava imenso. O serviço militar queria dizer regra geral guerra em África e isso era um pesadelo e ia sempre marcando. E quanto mais nos aproximávamos dessa altura mais tensos isso nos tornava. Como vê hoje Vila Franca?Não acompanho muito, mas não sei muito bem o que a presidente pensa sobre o concelho. Para Vila Franca de Xira tenho algumas ideias. Acho que era vital tirar dali a linha de caminho de ferro ou desviá-la. Não só é perigoso como poluente. Corta-nos uma das melhores coisas que é o contacto com o rio. Podiam aproveitar-se edifícios como o da fábrica da moagem. Depois gostava de puxar a brasa à minha sardinha e fazer um museu ligado à caricatura. Criar boa estatuária para a terra, azulejos e animar os espaços públicos de uma forma que toque as pessoas, que as influencie, que as sensibilize. Isso não acontece em Vila Franca?Em Vila Franca há o risco da tauromaquização da cultura. Existe uma estátua ao campino com touro, uma estátua ao toureiro. Só falta a do cavaleiro e cabresto. Parece que a vida é só isto. Não tenho nada contra, mas é uma questão de dose. É uma overdose. Era bom que se fizesse uma boa escultura de Álvaro Guerra. Na estatuária pública é preciso haver abertura à vida e à sociedade. O que não pode acontecer são coisas sem qualidade. Vivenciar a arte é trazê-la para a rua. Embelezar o quotidiano das pessoas. Tem que ser feito por alguém que saiba sonhar uma terra. Quando desce a rua e se depara com a estátua de Alves Redol o que sente?Sinto que a estátua é péssima. Já ouvi críticas completamente idiotas a dizer que o homem está nu. Os homens estão nus todos os dias. E não vem mal ao mundo. A estátua não me diz nada. Pior do que isso é a estátua da pobre varina que é uma coisa abominável. Já me coloquei ao lado da varina com alguns amigos para explicar o que penso. Trata-se de uma escultura supostamente naturalista. Ela tem os braços maiores do que eu apesar de ser mais baixa. Os braços teriam que lhe dar pelas canelas. A estatuária pública necessita de outra coisa. Há um analfabetismo estético muito grande.
Vila Franca de Xira tem uma “overdose” de tauromaquia

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