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O herói, a vidente e o compositor que não gostava de fado

O herói, a vidente e o compositor que não gostava de fado

O compositor Fernando Lopes-Graça, natural de Tomar, Baptista-Pereira, o primeiro e até agora único português a atravessar o canal da Mancha a nado e Conceição Mendes, a vidente da Ladeira do Pinheiro, Torres Novas, foram três figuras conhecidas do Ribatejo que Baptista-Bastos entrevistou ao longo da sua carreira de jornalista. Com ele recuperámos algumas memórias desses encontros. Fernando Lopes-Graça não gostava de fadoFernando Lopes-Graça escreveu em “A Música Portuguesa e os seus Problemas”: “O fado interessa-me pouquíssimo, e julgo que pouquíssimo poderá interessar aos verdadeiros músicos”. Baptista-Bastos recordou-lhe a afirmação no início de uma entrevista que lhe fez para o semanário O Ponto, em 1982, desafiando-o a desenvolver a ideia. O compositor, na altura com 75 anos, explicou-se. “Repito o que disse várias vezes, possivelmente com grande escândalo dos amantes do fado, admito-o. Como músico e como estudioso da música tradicional portuguesa, o fado, para mim, não tem qualquer significação. Isto não é uma atitude negativa, mas sim uma atitude de fidelidade pessoal ao meu pensamento e à minha arte”. Vinte e cinco anos passados sobre a entrevista, Baptista-Bastos conta a O MIRANTE um episódio que a complementa. “Um dia, depois de uma festa, o Carlos do Carmo ofereceu-se para levar o Fernando Lopes-Graça a casa. Ele vivia na Parede. Durante o trajecto lembrou-se da entrevista e meteu-se com ele. O maestro ainda foi mais longe. Disse que o fado era reaccionário. Depois, caiu em si e apressou-se a dizer que abria uma excepção para o Carlos do Carmo.”.Baptista-Bastos não é tão radical como era Lopes-Graça mas interessa-se mais pelos fadistas que pelo fado. “Gosto de ouvir cantar três ou quatro fadistas. O Carlos do Carmo, a Argentina Santos, a Amália e, um pouco, apenas um pouco, o Alfredo Marceneiro”. Apesar de ter escrito um dos volumes da colecção “Um Século de Fado”, para a editora Ediclube – Fado Falado – e para o mesmo ter entrevistado alguns fadistas mais novos, diz que nenhum lhe agrada. “Desta geração não gosto. Não me interessa”. Uma “Santa” muito sensualQuando, a meio da década de sessenta do século passado, começou o fenómeno da chamada “Santa” da Ladeira na Meia-Via, Torres Novas, Baptista-Bastos foi dos primeiros jornalistas a escrever uma reportagem sobre o assunto. O texto, com o título, “Conceição Mendes: Vidente”, está editado no livro “As Palavras dos Outros” (1969). “Essa reportagem foi toda cortada pela censura”, conta agora o autor, quatro anos após a morte da vidente. “Aquilo era outra religião e já havia Fátima. Ainda tenho as fotografias feitas pelo Marques da Costa, o repórter fotográfico que me acompanhou. Eu queria fazer um levantamento do país como tinha sido feito no século XIX - com outra grandeza, evidentemente - por um grande escritor espanhol chamado Benito Pérez Galdós. Queria mostrar o que é isto de ser português. Falei com o Matateu, o Tarzan Taborda, a Amália, o Aquilino Ribeiro…”Sobre a “Santa” escreveu a certa altura da reportagem: “Ela está deitada e os olhos são muito grandes e muito brilhantes. Sorri. Diz que tem ‘Púrpura’, que é a designação popular de leucemia. Tem um cancro no sangue – diz -, mas considera-se curada porque teve um aviso da Voz-Que-Ninguém-Ouve. Usa palavras escolhidas e parece-me que as decorou de cartilhas antigas. Todas as referências a mistérios são feitas num tom de receituário, de aprendizagem persistente. Quando lhe faço perguntas vulgares ela hesita, pisca os grandes olhos belos, responde com extrema dificuldade.”Baptista-Bastos nunca mais voltou ao local, nem nunca mais falou com a vidente. “A Conceição Mendes era uma mulher astuta. Quem lhe deu o poder – aquele tipo de poder, supersticioso, metafísico – foi o povo. Era uma época de vazio, de fome, de sofrimento. As pessoas agarravam-se a tudo. Ela viu que era um grande negócio. Quando fui à ladeira da Sola, como era conhecido aquele local, ela ainda era nova. Era uma mulher muito bonita. Sensual. Com um magnetismo quase animal. Tinha uns olhos muito belos, seios opulentos, formas arredondadas”.“Baptista Pereira é um herói que devia ser exemplo”“O Baptista Pereira era um campeão. Um campeão invulgar. Um herói popular. Pode ser comparado aos heróis escorbúticos dos descobrimentos. Ligamos ao Vasco da Gama, ao Pedro Álvares Cabral. E aqueles anónimos que iam nas caravelas? Eu quando falo do Baptista Pereira arrepio-me. Como é que alguém pode defender o distanciamento e a imparcialidade no jornalismo? Ele não tinha condições nenhumas. Eu acompanhei a travessia do canal da Mancha, apaixonadamente. Tinha que escrever apaixonadamente. Estava lá a imprensa de todo o mundo. Aparece ali um camponês; um tipo atarracado, determinado a fazer qualquer coisa que ele próprio não sabe o que é. Sabe é que tem que atravessar a Mancha a nado. Um ribatejano na Mancha, ali sozinho, sem nada. Ele é um homem que este país não mereceu. Faz parte dos heróis populares e cívicos que deviam ser apontados como exemplo; ser chamados às primeiras páginas dos jornais. Neste país já ninguém dá exemplos de coisa nenhuma a não ser maus exemplos. Fui entrevistá-lo a Alhandra. Conversámos num café. Ele passava e todas as pessoas o cumprimentavam. No final ele convidou-me para comer uma caldeirada e para bebermos uns copos mas eu naquele dia não podia ficar mais tempo. Eu escrevi “o impávido Gineto” porque queria chamar a atenção das pessoas para o facto de aquele homem ser um dos miúdos do livro Esteiros, do Soeiro Pereira Gomes. As pessoas hoje não estão interessadas nisso. Mais tarde, já depois do 25 de Abril encontrava-o de vez em quando nas manifestações. Tenho uma fotografia com ele ao lado. Está também o poeta José Gomes Ferreira.”.
O herói, a vidente e o compositor que não gostava de fado

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