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Crónica (incompleta) de uma inauguração

Crónica (incompleta) de uma inauguração

Não fui o primeiro a chegar à entrada do novo museu de Vila Franca de Xira mas de todos os convidados deverei ter sido dos primeiros. Por isso testemunhei a chegada das maioria dos ilustres que visitaram a cidade e fizeram parar o trânsito já de si tão complicado.Muito antes de Maria Barroso ter dado um abraço apertadíssimo a António Redol, um munícipe de Vila Franca, do lado da rua onde o povo se foi juntando, abriu as hostilidades. Ao ver um dos vereadores da câmara à porta do edifício, aproveitou a imagem do cordão policial que tinha à sua frente e lá vai disto: vivemos num país civilizado e livre, a polícia não precisa de se mobilizar de uma forma tão aparatosa para cerimónias de inauguração porque o povo é sereno. E esse garoto vereador que está ali à porta já me fez gastar oitocentos contos na limpeza dum terreno e ainda não me despachou a licença da obra. Se não fosse o cartão do partido não conseguia ganhar a vida…! Ainda a procissão ia no adro e a festa prometia. Mas, depois do desabafo, o munícipe desapareceu. Aparentemente foi lá só para deixar o recado…Três actrizes do grupo Inestética chamavam da varanda do edifício pelos primeiros nomes dos artistas representados no Museu. Era um chamamento original. Quando o nome dos autores coincidia com o nome de alguém que se encontrava no meio da multidão lá vinha a brincadeira. Eu tentava circular sem tapar a vista de quem tinha ocupado os melhores lugares em frente da porta do Museu do outro lado da rua. Mesmo assim as mulheres mais velhas sempre iam avisando: nós chegamos primeiro é melhor desandar. E lá ia eu desandando. A certa altura atravessei a estrada e tentei furar o protocolo espreitando para dentro do edifíco, quase meia hora antes da inauguração, mas quem guardava a porta não me deu hipóteses. Definitivamente o meu lugar era do outro lado do passeio. E foi para lá que voltei.Quando Maria da Luz Rosinha chegou já eu tinha visto chegar muita gente ilustre como o cineasta Fernando Lopes, que vinha acompanhado de outros dois Senhores da sua idade que, confesso a ignorância, não reconheci mas imagino que deviam ser também gente boa.A chegada da Ministra da Cultura foi dentro do horário. O povo espreitou mas não deve ter reconhecido a Ministra de Sócrates que mais viaja para fora do país. Só quando chegou Maria Barroso é que se ouviram as primeiras palmas. Muito fracas apesar de tudo, o que confirma o velho ditado de que por trás de um grande homem (Mário Soares) está sempre uma grande mulher que passa despercebida.Assim que o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, chegou é que a coisa tremeu. O cordão policial apertou até poder. Os agentes à civil eram tantos como os fardados. Nos meios políticos Cavaco ganhou fama de ser o mais medroso de todas as figuras de primeiro plano. E lá estavam as dezenas de polícias para o confirmarem. Cavaco saiu do carro do lado do passeio onde estava o povo e recebeu a primeira e única ovação da tarde da pequena multidão que o aguardava. Cinco minutos depois de se passear em frente do edifício, sem empurrões nem penetras a tentarem puxar-lhe pela aba do casaco, o que prova que o povo ainda é de confiança, o cordão policial já era. Um polícia à paisana dizia para o comandante da PSP. Então e o cordão policial ? Ao que o chefe respondeu. Para quê o cordão policial nesta altura, e virou a cara para o outro lado aparentemente preocupado com outra coisa que não a segurança do Presidente da República.Assim que Cavaco entrou no edifício, o que não foi fácil devido ao aglomerado de convidados que esperava para entrar, três senhoras bem vestidas passaram por mim em velocidade de cruzeiro: Tá Visto, dizia uma. Eu já vi o que me interessava, dizia outra.À porta do Museu ficaram tantos convidados como aqueles que couberam lá dentro. Mesmo assim uma mulher do povo perguntava a uma polícia: sabe se nós também podemos entrar ou são só eles ? A chamada ao microfone de António Redol para acompanhar a cerimónia inaugural parecia de propósito para testar o som. Quando foi o descerramento da placa de inauguração as palmas ouviram-se cá fora mas o povo e os outros convidados não corresponderam. A voz da oficial de cerimónias voltou a ouvir-se para um apelo invulgar: Pedimos a todas as pessoas o máximo de calma. Já mandámos buscar mais cadeiras para podermos sentar todos os convidados oficiais. Embora cá de fora não se visse lá para dentro facilmente se adivinhava uma certa confusão instalada. Na rua muitos convidados pareciam resignados. Para encher chouriços (enquanto não chegavam as cadeiras) a voz de cerimónias lembrou a presença de sua excelência o Presidente da República professor doutor Aníbal Cavaco Silva e pediu uma salva de palmas. Lá dentro terá feito tremer o edifício. Cá fora as palmas mal se ouviram.Os agentes da polícia de intervenção, que muito antes da multidão se formar já se mostravam em sentido em frente ao Museu, agora misturavam-se no meio do povo e pareciam convidados especiais para a inauguração. Graças a Deus que a polícia não é precisa para nada neste tipo de iniciativas, dizia uma senhora idosa de carrapito que deve gostar tanto de polícias como a minha avó mas que não deixa de ter um certo respeito pela farda.Os nomes de Mário Sacramento e Orlando da Costa soaram alto nos microfones instalados na rua. Estávamos em pleno acto protocolar. Convidados ilustres que não se aguentavam de pé à porta do edifício entravam no café que ficava mesmo ali ao lado. O sol do outro lado do passeio ainda queimava. Assim que Cavaco Silva entrou e o cordão policial se desfez passaram quase todos para o outro lado da rua onde já havia muita sombra.Quase meia hora depois de tudo ter começado ainda chegavam convidados, aparentemente ilustres, e perguntavam uns aos outros por onde é que se entrava lá para dentro. Uma tia (só podia ser de Cascais) agarrou no telemóvel e ligou à amiga que devia estar no meio da confusão mas não obteve resposta. Maria da Luz Rosinha fez a intervenção mais interessante. E não passou despercebido o facto de ter lembrado a ausência do presidente da Assembleia Municipal por motivos de saúde. Lembrou a terra laboriosa que sempre foi Vila Franca que apesar disso não deixou de ser terra e casa de homens empenhados na vida cultural. Orgulho e magnitude foram duas das palavras bonitas do seu discurso, mesmo depois de citar Milan Kundera para lembrar como se edifica a luta do homem contra o esquecimento.Do meu posto de observação, que ia mudando à medida que precisava de fugir do sol e de não dar tantas costas a quem estava atrás de mim, alguém fez uma previsão quando se ouviu anunciar a intervenção de António Redol, um dos grandes responsáveis pela obra que acabava de ser inaugurada. O Redol fala meia hora. Ou então não fala. Vais ver que ele começa a chorar e isto nunca mais acaba, dizia um homem de meia-idade no meio da rua para dois amigos bem dispostos. E não falou mesmo aparentemente por estar comovido. Quem leu o seu discurso foi a presidente da Câmara que acabou também por chorar com a particularidade de ler as palavras de António Redol que faziam o elogio à sua própria pessoa enquanto presidente da autarquia.Isto parece uma maldade, confessava a meio do discurso, tentando disfarçar a voz embargada pelo elogios que debitava a si própria no microfone onde devia estar António Redol.Quando a nossa Ministra da Cultura começou a usar da palavra percebeu-se que falava o Governo. Foi tudo muito certinho e protocolar. Só para o final do discurso, com a citação de versos de Carlos Oliveira, Isabel Pires de Lima deu a perceber que é uma mulher das letras muito mais do que uma mulher da política.Quando Cavaco Silva começou a discursar o meu telemóvel tocou. Tinha uma entrevista marcada na redacção de O MIRANTE que fica ali a cem metros do Museu. Atendi e disse que já ia a caminho. E lá fui falar com a Marta que, entretanto, também já estava ali por perto e fez os cem metros comigo.Da visita que depois fiz ao museu, quando mais de metade dos convidados já tinham metido pernas ao caminho de regresso a casa, falarei noutra altura e noutra crónica, aproveitando uma outra qualquer inauguração se, entretanto, não encontrar, para me substituir, um jornalista mais novo que não se importe de trabalhar ao sábado de tarde.Nota: Esta crónica ficava ainda mais incompleta se fizesse orelhas moucas a algumas vozes que ouvi, longe do burburinho da inauguração, criticando a construção do museu quando falta tanto investimento num centro de saúde em Vila Franca de Xira. Era a indignação de quem não participava na festa e que dever achar, para nosso desencanto, que a cultura faz mal à saúde.
Crónica (incompleta) de uma inauguração

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