Famílias Anónimas aprendem a lidar com o sofrimento da droga e do alcoolismo
Organização recebe pessoas que nas sessões partilham experiências, medos e angústias
As Famílias Anónimas, que na região funcionam em Vila Franca de Xira e Santarém, são portos de abrigo a pessoas que têm familiares toxicodependentes ou alcoólicos.
Clara. Só o nome próprio interessa nas Famílias Anónimas. Filha de alcoólica que sofre tanto ou mais com o problema que a própria mãe, que bebe há trinta anos. Tem vergonha de falar no assunto com as pessoas que conhece, com os amigos, com os vizinhos. Mas nas Famílias Anónimas (FA) onde se reúnem pessoas que têm familiares cujo único sentido da vida é mais um copo ou uma dose de heroína, haxixe, cocaína, Clara consegue abrir o coração e contar os problemas, partilhar as suas angústias, medos, vergonhas. Porque sabe que as palavras sofridas que lhe saem da boca ficam na redoma da terapia empírica de grupo.Numa sala de 25 pessoas, Clara é das mais novas. Os companheiros de sofrimento têm mais de 40, 50 anos. São pais que procuraram a FA na esperança de encontrarem a salvação dos filhos, irmãos, amigos e acabaram por encontrar-se consigo próprias na encruzilhada de desgostos e amarguras. A jovem abre o coração e desabafa. “Entrei para FA há dez anos e espero um dia dizer que a minha mãe está em recuperação”. No final da intervenção os colegas com quem partilha os problemas dizem “obrigado”. Todas as intervenções são importantes para retirar ensinamentos. Muitas das pessoas entram neste projecto por causa da toxicodependência. Ana, de Santarém, estica o braço no ar para começar a falar. “O que me fez mais impressão quando entrei foi ver um quadro na parede a dizer que somos impotentes. Pensava que controlava tudo, mas era o meu filho (toxicodependente) que me controlava. Na primeira vez não conseguia falar, só chorava”. Conhecem a Associação Portuguesa de Famílias Anónimas através de pessoas que já a frequentam, outras vão indicados por psiquiatras e psicólogos ao fim de várias depressões. Outros vão por indicação dos próprios dependentes. No último fim-de-semana na convenção nacional das Famílias Anónimas, que se realizou em Santarém, participaram mais de 200 pessoas de todo o país. Todas com uma história, mas com uma atitude diferente perante a vida. Muitas bateram no fundo mas conseguiram recuperar a dignidade e já riem, divertem-se e encaram melhor o flagelo que desabou sobre as suas cabeças. Manuel, pai de um toxicodependente de 41 anos com 13 anos de recuperação, recorda o dia em que entrou numa sala. “Ia cheio de sofrimento e via as pessoas a rir e a combinarem uma festa de Natal. Aprendi que não sabia nada, que podia abrir o coração que me iam entender. Aprendi a eliminar a raiva e a vergonha da minha vida que me fazia sentir infeliz”. As reuniões das FA começam sempre com a oração da serenidade, adaptada da oração do rei Salomão quando foi coroado: “Concedei-me Senhor serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar; coragem para modificar as que posso; sabedoria para distinguir umas das outras”. Vários participantes contam que depois de entrarem nestas terapias de grupo onde não há regras, não há receitas milagrosas nem aconselhamento de profissionais, os familiares entraram em programas de recuperação. Fala-se em Deus, em fé, em amor, mas a organização não é religiosa, dizendo-se antes espiritual. Aliás ser-se católico, rico ou pobre, onde reside, não interessa para nada neste conceito. Nem ninguém quer saber ou ousa perguntar. A vergonha é o estigma que impede muita gente de entrar nos grupos. Na região há dois a funcionar, em Vila Franca de Xira (às sextas-feiras às 21h30 no salão paroquial) e em Santarém (quartas-feiras, 21h00 no hospital velho). Eurico, de Santarém, revela que neste momento só oito pessoas participam nas sessões. “As pessoas têm vergonha de assumir, de entrar e poderem encontrar alguém que conhecem…”. Mas realça que a família deve ser unida porque os adictos, como lhes chamam, são manipuladores. Conseguem fazer separar os pais, conseguem arranjar estratagemas para alimentarem o vício, e é preciso dizer não. E é isso que se aprende nas reuniões onde se começa a desenhar uma nova vida para quem às vezes está mais doente psicologicamente que os familiares agarrados ao álcool ou às drogas.
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