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Um músico que detestava folclore

Um músico que detestava folclore

Bertino Coelho Martins, personagem multifacetada, homenageado na passagem do 80º aniversário

Bertino Coelho Martins faz 80 anos no dia 15 de Novembro. Figura respeitada no mundo da música e das danças e cantares tradicionais, viu o seu percurso reconhecido com a atribuição do seu nome a uma rua de Santarém. O município tem ainda preparadas diversas iniciativas de homenagem ao homem que durante muitos anos foi responsável pela biblioteca municipal.

Bertino Coelho Martins nasceu numa família pobre de Lapas, Torres Novas. Faz dia 15 de Novembro 80 anos. Aos nove anos deixou a escola e foi trabalhar como aprendiz de ferreiro, estabelecendo-se mais tarde por conta própria em Ribeira Ruiva. Nessa altura já a música lhe ocupava boa parte do tempo como instrumentista e regente de filarmónicas após o curso tirado no Conservatório em Lisboa e de mais alguns tirados por correspondência. “Regia a banda da Ribeira Ruiva e depois formei uma banda muito simpática no Chouto (Chamusca)”. Dava ainda aulas de música, a 20 escudos por lição. E actuava em bailaricos e festas sempre que solicitado. Apesar da entrada precoce no mundo do trabalho duro, cedo começou a pensar que o seu destino não iria ser passado entre martelos e bigornas. Quando chegou a altura de ir à tropa viu ali uma oportunidade de aperfeiçoar conhecimentos e de integrar os quadros militares como músico. O destino trocou-lhe as voltas, pois ficou livre na inspecção. Na sequência desse “desgosto” incentivou os três irmãos a dedicarem-se à música. E eles corresponderam com afinação, vivendo o sonho que Bertino urdira – todos eles foram músicos profissionais na GNR ou nas Forças Armadas. O gosto pela música pode ser explicado por razões genéticas. O pai, operário fabril tal como a mãe, “era um homem bom e um músico excelente”, culturalmente acima da média.O “vírus” estendeu-se ainda à esposa, que com ele aprendeu música e que o acompanhou também a cantar por festas e bailaricos por esse país fora. “Tocava em bailes desde Vila Franca de Xira até Penela. Na colectividade ‘Os Tomarenses’, em Tomar, faziam-se bons bailes”. Foi a forma encontrada pelo jovem Bertino para evitar as reprimendas da consorte sempre que chegava a casa às tantas da manhã. Se não podes vencê-lo, junta-te a ele é um adágio popular que assenta na perfeição.Bertino Coelho Martins tocava saxofone alto, clarinete, instrumentos de cordas, acordeão. “Quase todo o dinheiro que ganhava era com a música”. A sua fama chegou até Santarém, de onde em 1958 veio um convite que considerou irrecusável. Ofereceram-lhe a direcção da Banda dos Bombeiros, onde também tocava e ensinava crianças, e um emprego na câmara municipal. O seu destino era a biblioteca. Uma decisão que lhe influenciou decisivamente a vida. Ali esteve até 1993, altura em que se aposentou após vinte anos como principal responsável. “Foram os anos mais felizes da minha vida”, diz.“Ainda há muito gato por lebre no folclore”Durante a conversa com O MIRANTE sublinha a diferença das amizades construídas no meio cultural. “Gostava muito de falar com as pessoas. Ajudei muita gente nos seus cursos, nas suas teses, nas suas pesquisas”. Sabia quase de cor onde se encontravam os volumes e essa era uma ajuda preciosa.Curiosamente, até aí nunca fora uma pessoa muito interessada por literatura. Tinha apenas a quarta classe (entretanto fez o antigo quinto ano). Mas o hábito faz o monge e a proximidade a tanto livro fez com que ganhasse interesse pelas coisas da cultura e sobretudo pela investigação das nossas raízes e tradições. Foi assim que chegou a ligação ao folclore, actividade que “detestava” quando rumou a Santarém. Quanto mais vasculhava mais descobria o mar de equívocos em que vogavam muitos dos grupos etnográficos da região. Sobretudo no que toca à autenticidade do material apresentado, quer ao nível do traje quer das danças e cantares. O seu conceito de folclore era definitivamente outro. “Há grupos que tinha de criticar porque aquilo não era folclore”, diz Bertino Coelho, reconhecendo que apesar das coisas terem melhorado “ainda há aí muito gato por lebre”. Mas, ressalva com compreensão, “muitos deles não é por mal, é por não saberem o que é folclore”. Falta sobretudo informação e investigação. Embora realce que também é no Ribatejo que existem alguns dos melhores grupos nacionais. Essa diferença de conceitos e visões levou-o a divergir do amigo Fernando Lopes-Graça nalgumas ocasiões. Como numa em que foram fazer uma investigação à serra d’Aire. A intenção era recolher cantares de pessoas que viviam em pequenos povoados dispersos. “O Lopes-Graça dizia que tínhamos que valorizar as músicas. Recolhê-las e devolvê-las ao povo. Concordei com a sua valorização, mas disse logo que não deviam ser apresentadas como folclore, porque isso não era folclore”.Para Bertino Coelho, a folclorização nasce no meio da comunidade. E a deturpação começa logo que os grupos começam a interpretar danças e cantares, mesmo que involuntariamente. “Porque cada músico tem a sua sensibilidade e os próprios instrumentos do passado não eram os mesmos. Hoje possibilitam uma representação mais evoluída”. O músico concorda que o que se vê “é bonito em termos artísticos”. Mas recorda que, muitas vezes, “os grupos estão a apresentar um documento, mas a apresentá-lo com defeito”.
Um músico que detestava folclore

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