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A cineasta que passou fome ao lado de João César Monteiro

A cineasta que passou fome ao lado de João César Monteiro

Margarida Gil diz que “Branca de Neve” que mexeu com o cinema em Portugal

Apaixonou-se pelo cinema. E por João César Monteiro. Ao lado do cineasta, autor do polémico “Branca de Neve”, recebeu ameaças, passou fome e sofreu na pele os estigmas da liberdade de criação. Continua a filmar com a convicção de que o universo continua a ser profundamente masculino. O último documentário sobre o escritor Carlos de Oliveira - “Sobre o Lado Esquerdo” - foi apresentado no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

Porque é que há tanta resistência do público em ver cinema português?Não vão ver filmes portugueses e não ver quase nada! Porque os modelos americanos invadiram a cultura a todos os níveis. O cinema está totalmente colonizado pelo cinema americano. O cinema europeu, inclusivamente. Portugal é apenas um pormenor na indústria americana que precisa da Europa para continuar. É a terceira indústria mais importante, mas a Europa é fundamental. Nós somos consumidores do cinema americano.O problema é dos cineastas ou do público?Eu acho que está sobretudo no público que está colonizado e nem se dá conta. Não tem escolha. E os distribuidores são os grandes culpados. São funcionários do cinema americano. Portanto as pessoas consomem aquilo que lhes dão. É como se houvesse no mercado um certo tipo de maçã ou um certo tipo de pêra... As pessoas não têm outra opção senão consumir isso. E é o que acontece com o cinema americano, salvo raras excepções. Não quer dizer que o cinema americano não seja bom. O problema é que não há escolha. O cinema que está a fazer face ao cinema americano é o cinema asiático que é muito parecido. A Europa perdeu o pé...Outra das limitações é a fraca participação das mulheres. Se o cinema europeu é uma minoria dentro do cinema mundial, se o cinema português é uma minoria dentro do cinema europeu então as mulheres são a minoria das minorias. Mesmo assim ainda há algumas e não nos podemos queixar muito. Veja lá quantas mulheres americanas fazem cinema. Claro que as há, mas não chegam. Há a Sofia Copolla, que se não fosse filha de quem é, duvido muito que lá chegasse. Já disse em entrevista que quando trabalhava em televisão com o Herman apesar do apresentador ser muito rápido muitas vezes chegava a casa sem ter tempo de dar banho ao seu filho Pedro...Exactamente... Quem tinha todo esse peso era eu e não o João [César Monteiro]. Se calhar também não exigi, herdei essa tradição. Faço parte dessa cultura que estabelece que a mulher não só tem que lutar no trabalho como acumular com tudo o resto. Mas isso significa também o outro lado do poder na família. E a mulher não quer abrir mão dele. Estas coisas são complexas... Têm sempre dois lados...Continua a achar que o universo é profundamente masculino?Sim, claro. E o problema do cinema das mulheres, muitas vezes, é que projectam o imaginário masculino...Tenta fugir a isso?Não é consciente. Mas penso que sim. Não é nada deliberado. Vendo os filmes à distância penso que espelham a minha personalidade. Ser mulher espelha-se nisso. Foi companheira de um dos grandes vultos do cinema: João César Monteiro. Foi beneficiada ou prejudicada?Beneficiada, claro. Estar ao lado do João foi uma escola. Assim como foi uma escola ter conhecido o Carlos de Oliveira. São coisas que não se aprendem em mais lado nenhum. É incomparável. Crescer ao lado de uma personalidade criadora só pode ser uma vantagem.João César Monteiro foi visto por muitos como um “outsider”....Era completamente. E só conseguiu fazer filmes porque era muito forte e resistente. E conseguiu passar fome e tudo, senão não o teria feito. Esteve a seu lado na altura?Sem dúvida. Não foi nada fácil. E eu era muito mais nova. Tive que trabalhar, claro... Na televisão. Como é que viu o polémico filme “Branca de Neve”?Muito bem, gostei muito logo desde o princípio. Achei de uma grande coragem. Foi realmente a atitude de um grande criador. Que comportou riscos... Quiseram bater-lhe, teve que desligar o telefone porque havia ameaças físicas. As pessoas não perdoaram, sentiram-se ofendidas. Pelos apoios que o filme teve?Não, não só. Pela obra. Pela liberdade. Pela grande liberdade do criador. Que decide pôr negro quando as pessoas só querem ver imagens e bonecos...O que aconselha aos jovens que têm o sonho do cinema?A não pensar pela cabeça do cinema dominante. A resistir. A não fazer o que já está feito. A não repetir provincianamente formas que os outros impõe. A não se deixar colonizar...Mesmo correndo o risco de passar fome?Claro. E acho que as coisas hoje estão muito difíceis. É fácil pegar numa câmara digital e filmar, mas tudo o resto é muito caro. A facilidade é só aparente.
A cineasta que passou fome ao lado de João César Monteiro

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