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“Salgueiro Maia foi o homem certo no lugar certo”

Garcia Correia recorda como viveu o golpe militar que libertou o país da ditadura

Garcia Correia tinha 34 anos em 25 de Abril de 1974. Era o oficial mais antigo afecto ao movimento das forças armadas a prestar serviço na Escola Prática de Cavalaria. Teoricamente poderia ter comandado a coluna militar que marchou sobre Lisboa. Mas Salgueiro Maia não abdicou de liderar os homens que conhecia bem e com que lidava no dia a dia. Garcia Correia, que tinha regressado poucos meses antes de África, ficou em Santarém a comandar a unidade militar e a preparar a resistência, caso as coisas corressem mal.

Onde estava na madrugada de 25 de Abril de 1974?Estava na Escola Prática de Cavalaria (EPC), aqui em Santarém. Era capitão e fui um dos elementos que trabalhou, fez o possível, para que o 25 de Abril viesse a acontecer.Qual foi a sua missão em concreto?Estava num destacamento onde é hoje a PSP a comandar um curso de sargentos milicianos, que tinham acabado de ser incorporados, e que no dia seguinte mandámos para casa. Tinha contacto com os outros oficiais que estavam na EPC e partilhava com eles todas as informações. Como já sabíamos que a EPC ia sair sob o comando do capitão Salgueiro Maia, nessa noite combinámos levar o segundo comandante a jantar a minha casa. O comandante não estava e os outros oficiais superiores, majores e tenentes-coronéis, viviam em Santarém e não estavam no quartel.Esses oficiais não desconfiavam de nada?Não. Durante o jantar fui dizendo ao segundo comandante o que estava para acontecer, sem especificar datas, e perguntei-lhe se ficaria do nosso lado. Estava a tentar aliciá-lo, é esta a palavra possível, para que também viesse para o movimento dos capitães e tentar o golpe de Estado. Qual foi a resposta?Foi sempre dizendo que não. Na Escola Prática estavam a aguardar que desse um sinal para lá por telefone, para saber se o senhor dizia sim ou não. Ele achava que era uma criancice, que nós éramos muito novos… A certa altura telefonam-me para casa a perguntar: então? Respondi que o senhor estava intransigente e disseram-me para o levar porque estava na hora de o confrontar com os factos. E assim foi. Quando regressámos ao quartel o senhor depara com um oficial de dia que não era o que se tinha apresentado de manhã. É então que lhe explicamos que o que eu lhe tinha dito em minha casa já estava a acontecer. E manteve a posição de não aderir ao golpe?Manteve-se intransigente. Dissemos-lhe que ou se punha do nosso lado e assumia responsabilidades como comandante, ou então a partir desse momento mandávamos nós. Mais alguma conversa e o Salgueiro Maia disse que não valia a pena falar mais. Eu fiquei com o segundo comandante na unidade, enquanto eles foram preparar o resto da coluna para arrancar para Lisboa.Os soldados já sabiam o que ia acontecer?Havia oficiais e sargentos que sabiam. O pessoal estava mais ou menos sensibilizado mas não corríamos o risco de dizer a toda a gente. Aliás esse jantar em minha casa não foi só para tentar convencer o segundo comandante como para libertar a EPC de oficiais não aderentes para se poder trabalhar à vontade. Havia soldados e cabos a trabalhar nas viaturas, a prepará-las, mas sem saber para quê. Mais tarde Salgueiro Maia explicou na parada o que ia acontecer e perguntou quem queria ir. Que eu saiba ninguém saiu. Antes pelo contrário, sobrava gente. Não puderam ir todos.Essa adesão não terá derivado também do espírito militar de subordinação aos oficiais?Alguns talvez. Mas não muitos. O capitão Salgueiro Maia explicou bem que iam para Lisboa para derrubar o Governo. E que só ia quem queria.O senhor ficou no quartel?Sim.Teve pena de não alinhar nessa aventura?Tive pena, porque era o capitão mais antigo. Mas tinha vindo de Angola em Janeiro, o Maia já cá estava e a tropa era a que ele comandava na Escola Prática. Eu estava num destacamento a comandar o curso de sargentos milicianos. E ele fez muita questão em ir com a tropa que comandava para Lisboa. Perante isso não havia necessidade de estarmos a dirimir e eu fiquei como segundo comandante. Qual foi o seu papel?A minha responsabilidade foi, juntamente com o capitão Correia Bernardo, montar o sistema de defesa de Santarém no caso de insucesso. Porque um mês antes tinha falhado o golpe das Caldas, a 16 de Março. Aprendemos alguma coisa com isso. Se as coisas corressem mal tínhamos um dispositivo nos pontos altos da cidade, com carros de combate e auto-metralhadoras, para proteger a coluna numa eventual retirada.Seria uma resistência que não duraria muito tempo. Tínhamos essa consciência. Mas também estávamos confiantes que essa resistência seria suficiente, pelos contactos que tínhamos com outras unidades que haviam garantido que aderiam ao golpe e que certamente viriam em nosso apoio.Há quanto tempo sabia que se preparava esse golpe militar?Comecei a pertencer ao Movimento das Forças Armadas ainda em Angola. Acabei a minha terceira comissão em Dezembro de 1973 e apresento-me em 8 Janeiro de 1974 em Santarém. Naturalmente continuei aí também dentro do movimento. No 16 de Março, quando se dá o golpe das Caldas, já sabíamos que se ia fazer alguma coisa. Só não sabíamos quando. Estávamos a aguardar uma ordem de operações que estava a ser feita. Definia o que cada unidade ia fazer e a que horas.O golpe das Caldas foi uma acção desgarrada do movimento das forças armadas?Pode-se dizer que sim. Até porque tínhamos contactos com oficiais das Caldas que conhecíamos pessoalmente a quem dissemos para não sair, porque sabíamos que outras unidades não iriam sair. Na altura não tínhamos condições para apoiar. Por exemplo: só depois fomos a Santa Margarida buscar munições. Havia uma série de condicionalismos...Esse golpe falhado podia ter deitado tudo a perder?Até certa medida deitou. O poder da altura tomou uma série de medidas que não tomaria. Prendeu-os a todos, mandou oficiais para os Açores, redistribuiu oficiais que suspeitavam que estavam dentro do movimento por outras unidades. Tivemos que reajustar quase todo o dispositivo.Como é que funcionava a partilha de informação e a coordenação entre todos numa época em que não havia telemóveis nem Internet?Muitas vezes era através de contactos directos. Tínhamos reuniões clandestinas em vários sítios. Embora também fosse possível por telefone, pois nessa altura ainda não se pensava em escutas.Falou com a sua esposa sobre o que se ia passar?A minha mulher estava a par de tudo. Disse-lhe que ia ser nesse dia. Quando sentiu as auto-metralhadoras a passar meteu-se no carro e foi para Alpiarça, para casa dos pais, porque não sabia o que ia acontecer.Quais eram os seus sentimentos nessa madrugada?Eram de optimismo. Sentia que as forças armadas, salvo algumas excepções, estavam em consonância para derrubar o regime. Tinha alguma esperança que fosse bem sucedido. Sabiam bem o terreno que pisavam? Sabíamos que era uma missão arriscada, que podia virar-se ao contrário. Bastava que aqueles oficiais ou sargentos que tinham os carros de combate em Lisboa tivessem obedecido às ordens do brigadeiro e disparado contra a força do Maia para aquilo ser um banho de sangue. Mas tínhamos contactos com eles de forma a evitar isso. E funcionou.Esse terá sido o momento nevrálgico que podia ter virado o rumo à História.Sim, porque a partir daí começa a juntar-se o povo, a população, o que moraliza as nossas forças. É a partir daí que o Maia recebe ordens para se dirigir para o Carmo, onde estava Marcelo Caetano. Já com carros de combate que não tinha quando saiu de Santarém, pois daqui só levou auto-metralhadoras. Os carros de combate que leva para o Carmo são do Regimento de Cavalaria 7, que não dispararam contra ele e reverteram para o nosso lado.Como é que foram as comemorações, a ressaca desse dia?Quando soubemos que tínhamos ganho, que tinha corrido tudo bem, foi um alívio. E o regresso da coluna militar a Santarém?Nunca tinha visto tanta gente junta a dar vivas à revolução, aos militares da Escola Prática de Cavalaria e ao capitão Salgueiro Maia. Juntaram-se nessa manhã, dois dias depois da revolução, milhares de pessoas junto à EPC e à câmara.

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