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Manuel Maria Fialho passou 60 anos de volta dos sapatos

“Os sapateiros tinham fama de bêbados e sujos”

Já não há quem faça sapatos à mão no Cartaxo. Contam-se apenas um ou dois no concelho em actividade a fazerem botas ribatejanas, um calçado artesanal da região.

Quando em novo decidiu ir para a casa dos seus avós, no Cartaxo, jamais lhe passaria pela cabeça que a profissão de coser solas e sapatos seria o ofício para uma vida inteira. Tinha doze anos quando iniciara a aprendizagem, por “não haver muito mais por onde escolher”. Natural de Santa Catarina, concelho de Caldas da Rainha, deixou a terra que o viu nascer e também os pais que trabalhavam arduamente no campo, para “arranjar dinheiro” e ajudar nas despesas da casa. A história da sua vida foi contada numa sessão das Conversas da Taberna, no Museu do Vinho do Cartaxo.Conta o sapateiro que quando pediu a um mestre do calçado com oficina no Cartaxo para lhe ensinar o ofício, esteve dois anos inteiros a trabalhar sem receber um tostão. Durante esse período aprendeu a fazer sapatos e botas, coser solas e remendar calçado. Só depois da experiência adquirida o patrão lhe começou a pagar 20 escudos por mês e mais tarde 100 escudos. Chegava a trabalhar 16 horas por dia e só ao fim-de-semana conseguia dar um pézinho de dança nos bailes para apreciar uma ou outra rapariga, ou então jogar chinquilho ao final da tarde com os amigos.Apenas aos 14 anos teve a oportunidade de ir aprender a ler e a escrever, através de um curso que tinha aberto para adultos. Recorda os professores e a vontade que tinha de aprender. “Era um aluno exemplar. O professor dizia que qualquer dia estava com a quarta classe nas mãos. Mas não foi o que se passou. Os alunos foram desistindo e a escola teve de fechar”, conta com alguma tristeza. Foi chamado para a tropa quando completou a maioridade o que fez com que viesse a terminar a quarta classe quando já tinha 34 anos. Manuel Maria Fialho, ou apenas “Fialho”, como era conhecido, nunca foi uma pessoa de conformismos e conta que quando se sentia aborrecido com os patrões depressa tentava outra alternativa. Esta sua peculiar maneira de ser fez com que tenha “saltado” de patrão em patrão, “uns bons, outros menos bons”, confessa.À medida que os anos iam passando, o sapateiro Fialho ia cimentando a sua carreira e depressa deixara de ser o aprendiz para se afirmar como um verdadeiro mestre. Quando se estabeleceu por conta própria, diz que se iniciara a “desgraça”. “Quando comecei a aprender a arte tinha gosto, depois de começar a trabalhar por conta própria o gosto foi-se apagando. Ficou muita gente a dever-me dinheiro”. Uma má sorte que Manuel Fialho ainda pensou vingar colocando os nomes dos devedores na vitrina da sua loja. Preferiu, no entanto, esquecer o assunto pois “águas passadas nunca moveram moinhos”. Para além dos dissabores da profissão, relembra com carinho episódios do seu dia-a-dia que jamais apagará da memória. Conta que adultos e crianças iam pedir as pontas das linhas com que cosia os sapatos para ligarem tampas de graxa umas às outras e fazerem de conta que eram telefones.A fama dos sapateiros na altura ao que parece também não era das melhores. Soava-se que eram “bêbedos, fumadores e sujos”. Mas o mestre Fialho foi sempre muito vaidoso. Desde que começou a ganhar alguma coisa que investia nalguma roupa ou calçado. Chegaram a chamá-lo de “sapateiro rico” por andar sempre bem vestido e com a barba feita, ri-se enquanto relembra a sua juventude. “Em 1961 cheguei a ter 14 pares de sapatos. Nunca andava com os mesmos”.Fazia botas e sapatos por medida e ao gosto do cliente. Os materiais com que trabalhava vinham de um armazém de Lisboa. Não havia melhor altura para o negócio do que nos primeiros meses do ano. Chegou a trabalhar muitos serões para dar vazão às encomendas. As horas que passava sentado no banco pouco confortável “deu-lhe cabo das costas”. Uma arte de “sacrifícios” que não esquece mas que também não lhe deixou grandes saudades. Ainda tem um avental que não chegou a usar em sua casa.Em pleno século XXI já não há quem faça sapatos à mão na cidade do Cartaxo. Contam-se apenas um ou dois no concelho em actividade a fazerem botas ribatejanas, um calçado artesanal da região. Não fosse isso e a profissão seria já uma realidade extinta. “O mestre Fialho foi sempre muito vaidoso. Desde que começou a ganhar alguma coisa que investia nalguma roupa ou calçado. Chegaram a chamá-lo de “sapateiro rico” por andar sempre bem vestido e com a barba feita, ri-se enquanto relembra a sua juventude”

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