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O último resistente da primeira Feira do Ribatejo

O último resistente da primeira Feira do Ribatejo

João Moreira foi um dos braços direitos de Celestino Graça na organização do certame

Com Celestino Graça por perto não havia temor que resistisse. Foi por isso que João Moreira não hesitou quando decidiu integrar a equipa que pôs de pé a primeira Feira do Ribatejo e ajudou a consolidar o evento.

Pode dizer-se que João Moreira é o último resistente dos primórdios da Feira do Ribatejo.

Tanto quanto sei, sim. Até há quatro anos era o senhor Cacho e eu. Entretanto ele morreu e agora sou só eu. O mais próximo depois é o José Júlio Eloy, que foi nosso tesoureiro até 1974. Mas realmente desses primeiros dez anos eu sou o único resistente.

Foi um dos braços direitos de Celestino Graça na criação e organização da Feira do Ribatejo. De que teve mais receio quando entrou nessa aventura?

Julgo que não tive receio de nada. Ao pé do Celestino Graça não se tinha medo, avançava-se. Cada um de nós tinha uma função e as coisas eram discutidas em conjunto. Ele dava-nos as suas instruções. Eu não interferia com os homens dos bovinos, nem o homem dos tractores interferia com o meu trabalho, com os grupos folclóricos.

Não temiam que a cidade e a região não respondessem à altura do empreendimento?

Nesses primeiros tempos o entusiasmo era contagiante, abrangia todos. Houve uma grande aceitação da cidade, sobretudo, embora a feira tenha sido criada para dar projecção à agricultura do Ribatejo. Dez anos depois o Estado reconheceu o nosso trabalho e passou a ser uma feira nacional.

A feira não ganhou uma dimensão que ultrapassou as vossas próprias expectativas?

Sim, ultrapassou. Quando a feira ganhou dimensão nacional passou a ter mais expositores e o campo da feira começou a ser pequeno. Até que se pensou em comprar a Quinta das Cegonhas.

E daí nasceu o Centro Nacional de Exposições e Mercados Agrícolas (CNEMA), que hoje acolhe a Feira Nacional de Agricultura.

A transferência da feira lá para baixo foi uma necessidade. Estou convencido que se o Celestino Graça cá estivesse concordaria.

Vozes mais puristas dizem que a tradição da feira morreu com a ida para o CNEMA?

A Feira do Ribatejo morreu um bocadinho. Porque cá em cima tinha muita animação, com touradas dentro da feira, os grupos folclóricos toda a semana e depois o grande festival internacional de folclore nos três últimos dias. Isso deu uma grande projecção à feira. Quando foi lá para baixo não permitiram que houvesse festival de folclore. Logo aí foi uma decepção para muita gente. Não se gosta do Ribatejo por acaso, mas porque o Ribatejo vive dentro de nós. As suas tradições, os seus trabalhos…

A feira está bem lá em baixo?

Está. Aquela feira não é mais do que a glorificação do grupo de homens que a iniciaram e de que eu modestamente fiz parte. Mereceram, pelo seu trabalho e devoção, que a coisa se prolongasse. E a Feira Nacional de Agricultura está ali para se prolongar por muitos anos.

Sente orgulho quando visita a feira? Há ali um pedacinho de si?

Sinto orgulho. Também não podemos ser tão modestos como isso. Orgulhome de tudo o que fiz por esta cidade. Participei em imensas coisas. Nunca exigi um tostão de parte alguma.

Sente saudades da antiga feira?

De cada vez que o meu pensamento vai para o Campo Infante da Câmara, vejo aquela manga oval que havia, aquilo cheio de gente, o Celestino Graça ao microfone, o sol de fim da tarde de Junho, os campinos a virem do fim da manga e ele a dizer: “senhoras e senhores, espectáculos destes só aqui na Feira do Ribatejo em Santarém”. Aquilo entrava por todos os poros que temos no corpo. Tornava-nos felizes ver aquele quadro lindo que era o Ribatejo a cavalo. Era uma autêntica injecção de ribatejanismo.

Ainda hoje precisa de tomar essas injecções?

Tanto como de ir de vez em quando a Lisboa ouvir uma orquestra sinfónica. Vivo de emoções.

O que acha da Câmara de Santarém organizar no antigo campo da feira algumas actividades na mesma altura em que se realiza a Feira de Agricultura no CNEMA?

Basicamente não estou de acordo, há alguma concorrência. Aqueles visitantes da feira que habitualmente vão para beber um copo ou jantar, se tiverem isso cá em cima já não vão lá abaixo. Depois há as corridas de toiros com bilhetes baratos, o que também cativa.

Dói-lhe a alma ver o estado de abandono em que se encontra o antigo campo da feira?

Vou lá muitas vezes e fico muito triste. Andei ali quilómetros de um lado para o outro. Estão muitas coisas para ali projectadas e acho que se deve fazer alguma coisa. Não se compreende que a feira tenha passado lá para baixo há tantos anos e ainda não tenha sido feito nada naquele espaço. Gostava de ver aquele terreno bem aproveitado, com uma biblioteca, com espaços verdes para as crianças e jovens…

Celestino Graça tem sido devidamente reconhecido pela cidade?

As pessoas estão vivas enquanto houver quem se lembre delas. O grupo a que pertenço, e que já somos poucos, vai duas vezes por ano à sua campa. Terá sempre a nossa eterna recordação. E os mais jovens do grupo que ele fundou, e que não o conheceram, ao dançar estão a honrar a memória dele. Com isto não pretendo deificar Celestino Graça, mas referir o seu grande trabalho em prol de Santarém e do Ribatejo.

“Santarém é a minha eterna namorada”

Ribatejano convicto, aventureiro contumaz, homem dos sete ofícios

É um ribatejano arreigado às tradições mas não abdica da sua faceta universalista e de procurar novos mundos, novas emoções, novas culturas…

Sim, mas mesmo quando andava lá por fora ao fim de 20 ou 25 dias começava a ter uma nostalgia de Portugal e da minha cidade. Tenho andado por cidades lindas, como Rio de Janeiro ou Viena de Áustria, mas acho que Santarém tem aquele encanto… Não é mais bonita que outras terras, mas é a minha eterna namorada e que eu sempre amei. Foi aqui que sonhei, que vivi, que me desenvolvi, que estudei, que tive amigos. Aliás, ainda hoje os tenho. Sou amigo de toda a gente.

Aproveitou e continua a aproveitar bem o seu tempo.

Agora já com menos possibilidades. Mas ainda faço parte do Grupo de Guitarras e Canto de Coimbra. É outra vertente que me diz alguma coisa e me transporta aos meus tempos de estudante, quando fazíamos serenatas às raparigas mais o professor Veríssimo Serrão e o Alexandre Tavares, que foi um grande boémio cá de Santarém.

Também tinha a sua costela boémia?

Sim. Não sou saudosista nem vivo do passado, mas claro que também me amargura que esse tempo tenha passado e já não possa voltar. É a tal saudade que não tem tradução.

É um espírito aberto?

Em criança era muito acanhado. Era um menino de São Domingos que vinha para Santarém agarrado às saias da mãe. Depois fui para o liceu e comecei a abrir.

Nessa altura era um privilégio frequentar o liceu.

É verdade. Muitos dos meus contemporâneos, se tivessem oportunidade, teriam dado excelentes médicos, advogados, engenheiros. Não tiveram sequer as possibilidades que eu tive, que também não foram muitas. Quando acabei o sétimo ano do liceu fui para a tesouraria da câmara trabalhar. Ganhava 15 mil reis por mês em 1942.

Acabou por escapar ao trabalho braçal que foi o destino de muitos jovens desse tempo.

A gente tinha terras e o meu pai mandava-me ir com os homens para o campo nas férias. Aprendi com os homens a cavar, a podar, a pisar uvas, a acartar as azeitonas. O que me trouxe grandes vantagens no liceu em comparação com os meus colegas da cidade.

O que acha dos tempos de hoje?

Não estou muito sintonizado com aquilo que os jovens hoje gostam, como as bandas de rock. Tudo o que meta tambores não gosto. Gosto mais de violinos. Mas a mocidade tem direito à sua vida e à sua época e a divertirem-se. Às vezes com exageros que no nosso tempo não tínhamos. Mas toda a juventude tem de passar por essa iniciação, beber uns copos, envolver-se em horas perdidas...

O que mais o aproxima dos jovens?

Sinto-me próximo quando eles me vêm perguntar coisas, quando me pedem para os ajudar a fazer trabalhos. Aí vejo que há interesse. E até onde as minhas possibilidades me permitem já tenho ajudado, sobre toiros, sobre folclore, sobre coisas que eu, mais ou menos, posso encaminhá-los.

Os toiros podem ser um factor de aglutinação?

Podem, sim senhor. Já fiz um trabalho com uns jovens que não percebiam nada de toiros. Estivemos uma hora a conversar, eles escreveram e fizeram um trabalho interessante.

É adepto dos toiros de morte?

Não. Gosto mais da corrida à portuguesa.

É catalogado como um viajante, um aventureiro. Essa visão é justa?

Sim. Agora sou menos aventureiro. Mas nos primeiros anos que dediquei ao campismo fui dez ou quinze anos de saco às costas pela Europa fora. Sempre à boleia. Fui parar a Itália, a Inglaterra, à Bélgica, Holanda… O mais difícil era atravessar a Espanha. Aliás, dos Pirinéus para lá era outro mundo.

Ia sozinho?

Quase sempre sozinho. Porque é mais fácil safar-nos à boleia. Isso é que começou a fazer-me sair daquela timidez que tinha. Até aos 30 anos andei sempre de saco às costas.

Nunca perdeu o vício de viajar.

Depois de ser campista fui folclorista. Comecei a sair com o senhor Celestino Graça. Só não fui ao Brasil e a África.

Com uma personalidade tão multifacetada, como é que se define?

Sou o João Moreira de Santarém, cidadão do mundo. A vida é bela é o meu lema. Um sorriso às vezes resolvia tantos problemas…

É uma pessoa desapegada ao dinheiro?

Sem dinheiro não se pode viver. Mas, como uma vez disse, sou um homem que nunca teve um tostão e que se tivesse gastava-o logo.

Também disse que roubava à boca para comprar livros.

Houve uma época da minha vida em que isso aconteceu. Quando andava a constituir a minha biblioteca que já tem dez mil livros, também em consequência da que o meu pai tinha.

O interesse pela leitura, pela cultura, já vem de família.

Sim.

Continua a cultivar as tertúlias com outros apaixonados da etnografia e do folclore. A amizade e o convívio são o seu oxigénio?

As tertúlias são um local de encontro, geralmente unidas por um tema ou interesse. Em Lisboa pertenci a diversas tertúlias de fado de Coimbra e de Lisboa.

Canta fado?

Não. Improvisava umas quadras e sabia acompanhar. Conheci quase todos os fadistas de Lisboa. Tal como os artistas de circo. Foi outro mundo que vivi com muita intensidade e ainda hoje tenho amigos no circo.

O que lhe falta fazer na vida?

Falta ir à Austrália. Estava para ir com o senhor Cacho, mas ele faleceu há quatro anos. E com esta idade já é perigoso meter-me ao caminho. Já estive em quatro continentes, falta-me conhecer o quinto. Mas há coisas que me interessam hoje mais, como ter saúde e conservar os amigos bons que tenho.

Alguma vez se meteu na política?

Não. Vivi o 25 de Abril em Lisboa, vi a chegada dos políticos do exílio, estive naquela grande manifestação do 1º de Maio, mas nunca fui militante de qualquer partido. Dou-me bem com todas as camadas políticas e religiosas.

Ver o seu nome numa rua deve ser esquisito?

Isso foi uma surpresa com que nunca sonhei. Tanto que quando tive de falar durante a inauguração disse que não sabia como se agradecia ter o nome numa rua. Mas dá uma certa satisfação. Só que daqui a 20 ou 30 anos ninguém vai saber quem foi o João Gomes Moreira. Não está quando nasceu, o que foi, qualquer coisa que justificasse aquil.

Um andarilho que palmilhou múltiplos caminhos

João Gomes Moreira caminha para os 86 anos, que perfaz em 22 de Agosto, com a mesma irreverência e alegria de viver que há mais de meio século o levaram a percorrer à boleia as estradas da Europa. Espírito aberto e empreendedor, continua com uma vida activa. Frequenta um curso de informática, permanece ligado ao Grupo de Guitarras e Canto de Coimbra, à etnografia. Entrou por direito próprio no rol estrito das figuras da cidade do século XX pelo seu dinamismo, pelo apego à cultura e às tradições, pelas suas andanças e viagens “abensonhadas”, pela jovialidade contagiante.

O vasto currículo que justificou a atribuição de uma rua no Jardim de Baixo, uma urbanização na periferia de Santarém, fala por si. Foi durante anos um dos colaboradores de Celestino Graça na Feira do Ribatejo, onde coordenava a área do folclore. Ajudou a fundar a Orquestra Típica Scalabitana, a Associação de Estudo e Defesa do Património de Santarém, o Núcleo Campista Scalabis.

Nasceu no Beco das Cortezes, no centro histórico de Santarém. O pai era de Vila Nova de São Pedro (Azambuja). A mãe era de Alcanena. Filho de um sacerdote que não lhe negou a paternidade nem a educação, teve formação católica e esteve ligado a várias organizações da igreja. Estudou até ao sétimo ano do liceu. Finalizados os estudos foi trabalhar para a Câmara de Santarém (1942), onde passou pela tesouraria e pela biblioteca municipal antes de rumar a Lisboa, em 1962, atraído pelo ordenado que lhe era oferecido por uma empresa de produtos farmacêuticos onde esteve até 1991. Trabalhava na capital, onde conheceu muita gente ligada ao fado e ao circo, mas ao fim de semana estava em Santarém, a sua “eterna namorada”. As outras, de carne e osso, foram mais voláteis. Nunca chegou a casar, mas não se arrepende.

Tocou diversos instrumentos, fez de palhaço, cantou, escreveu, foi actor. Colabora em rádios e jornais. Fala inglês, francês e castelhano. Integrou a comissão municipal de turismo, após ter tirado um curso da área no Instituto das Novas Profissões. Foi guiaintérprete. O campismo, o folclore e o turismo deram-lhe a oportunidade de correr mundo, da antiga União Soviética aos Estados Unidos da América, passando pela China e Tailândia. Só lhe falta visitar a Austrália para colocar os pés nos cinco continentes.

Cego de uma vista e com um glaucoma noutra, nem assim perde a vontade de se actualizar. Tem um computador onde “vai andando devagarinho”. Lê o correio electrónico, navega na Internet. Coisas com que há meio século não sonhava. “Acho que esta máquina infernal é hoje uma necessidade”, reconhece, na sala da casa onde habita, bem perto da Torres das Cabaças. A casa arrendada é uma espécie de museu. Em prateleiras e armários multiplicam-se os livros, as pastas de arquivos, fotografias, jornais, recortes, instrumentos musicais, chapéus. Um caos organizado que recupera memórias e traduz bem a personagem multifacetada de um homem que não andou na vida de olhos baixos e mãos nos bolsos.

O último resistente da primeira Feira do Ribatejo

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