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“O nosso doping era café com vinho do Porto”

Na década de 50 já tinham que fazer determinados sacrifícios em nome do desporto?Já havia directores que espiavam o que nós fazíamos. Mas cheguei muitas vezes a quebrar as regras. Nos estágios não podíamos ir a casa. Já era casado e fugia pela janela à noite para ir ter com a minha mulher. Deixava umas almofadas na cama e um jornal para simular que estava a ler.Nessa época o que é que se fazia para aumentar o rendimento do ciclistas?O nosso doping era café com vinho do Porto que metíamos dentro dos boiões e que bebíamos nas chegadas, mas já existiam uns comprimidos estrangeiros.Quer dizer que nunca tomou químicos?Por minha iniciativa não. Que eu saiba só uma vez é que o massagista da equipa me meteu dentro do boião da água uns comprimidos. No fim da prova, em Santarém, comecei a sentir-me mal e levaram-me para o hospital onde me fizeram uma lavagem ao estômago. Soube depois o que era porque o tal massagista, que era um bom homem e que, acredito, apenas nos queria ajudar, acabou por confessar ao presidente do clube o que tinha feito. Como vê os actuais casos de doping no ciclismo?Este é um dos desportos que mais proporciona estas situações, apesar de haver noutras modalidades, porque exige um grande esforço físico.E justifica-se?Não! Porque um ciclista que toma drogas para superar as dificuldades físicas está a colocar a sua vida em perigo. E têm morrido alguns ciclistas por causa disso. Se calhar também há futebolistas que tomam produtos para aumentarem a sua resistência, mas nem se chega a saber porque a fiscalização anda mais em cima do ciclismo. Alguns jogadores que dizem morrer por ataques cardíacos se calhar também foi devido ao doping.Dois filhos que morreram em cima de duas rodasNunca mais teve qualquer actividade ligada ao ciclismo. Foi alguma desilusão?Durante alguns anos ainda acompanhei o meu filho e desliguei-me por uma razão muito violenta. Foi quando o meu filho, que tinha um futuro promissor e já tinha ganho várias etapas da Volta a Portugal e era considerado um grande ciclista, morreu após se ter sentido mal num contra-relógio na Volta ao Oeste (Troféu Joaquim Agostinho) por ter tomado estimulantes.Nessa altura ele já não estava no Águias de Alpiarça.Tinha corrido como amador pelos Águias e depois foi para profissional no Bombarralense e foi ao serviço deste clube que faleceu. Ia fazer 22 anos, estava casado e à espera de uma filha que hoje tem 27 anos e que não chegou a conhecer o pai. Fiquei e ainda estou destroçado sobretudo pela forma como tudo aconteceu. Por eu ser contra o doping e por o ter sempre sensibilizado para nunca tomar coisas que lhe pudessem pôr a vida em risco. Como é que sabe que foi por causa do doping?Falei com o médico que lhe fez a autópsia. O meu filho ainda esteve uma semana internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e tentou por várias vezes contar-me o que se tinha passado mas eu nunca quis ouvir, até que ao fim de oito dias não resistiu porque tinha o fígado bastante afectado.Para um desportista que é contra as drogas ver um filho morrer por causa delas deve causar uma grande revolta…Na altura senti que já não havia a verdade e o amor à camisola como no meu tempo. Continuo a pensar que o meu filho não era pessoa para tomar doses excessivas. Talvez tenha tomado algo e alguém, sem saber que já tinha ingerido estimulantes, lhe tenha colocado mais uma dose dentro do boião da água. Quando acompanhava o seu filho sentia que havia pressões para que os ciclistas tomassem produtos proibidos para aumentarem o rendimento?Sim. Lembro-me que uns dias antes da prova em que aconteceu esta tragédia, o treinador dele veio perguntar-me se eu o deixava dar um comprimido ao meu filho, Lima Fernandes. Disse-me que não fazia mal e que talvez assim ele pudesse ganhar a etapa. Já andavam atrás dele há algum tempo e foi o meu próprio filho que depois me veio perguntar se podia experimentar. Apesar de se mostrar sempre contra experimentou e nessa etapa ficou em segundo lugar.O seu segundo filho nunca quis ser ciclista?Nunca lhe dei hipóteses para isso. O José António gostava também muito do ciclismo mas nunca o deixei porque o irmão tinha falecido há pouco tempo e tinha muito medo. Até porque é numa altura em que aparecem muitos casos de doping nesta modalidade. Não ficou com pena?Fiquei e não me valeu de nada o facto de o ter impedido. Não morreu em cima de uma bicicleta e acabou por morrer num acidente de moto com 21 anos. A mesma idade com que tinha falecido o irmão. Também nunca fui de acordo que ele tivesse uma moto, mas ele era maior, trabalhava e comprou-a com o dinheiro que amealhou. Não podia fazer nada.

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