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“Um actor é um homem que arrisca”

“Um actor é um homem que arrisca”

Jorge Silva é um homem do teatro e da televisão com o Ribatejo no coração

Nasceu na Chamusca em 1962. Mudou-se para Évora para estudar teatro. Nunca mais parou. E muito, como se pode comprovar no seu currículo. Jorge Silva já experimentou também cinema e televisão. Os mais novos conhecem-no como o famoso professor da série “Morangos com Açúcar”. O homem, o actor e o ribatejano de sangue e coração revelam-se numa entrevista a O MIRANTE, a poucos dias da estreia como encenador na peça “Canção do Vale”, no Teatro D. Maria II, em Lisboa.

Um actor é um homem normal?Sim! A anormalidade está em ter escolhido esta profissão. Um actor é um homem que arrisca.A vida material e espiritual de um actor obedecem a um regime franciscano? No sentido de deitar a horas, ter a vida organizada…Convém ter algumas regras. Tem mesmo de se ter alguma disciplina. Varia um bocado de pessoa para pessoa. Ter uma boa condição física, por exemplo, o actor é corpo também, não é só voz… Convém ter alguns cuidados… Eu fumo (risos)O Mário Viegas, por exemplo, não era disciplinado. Era de excessos.Completamente.Qual é a diferença entre o Jorge Silva actor e, por exemplo, o Mário Viegas actor?A diferença é muita porque o Mário Viegas era um grande actor e até foi um dos colegas que mais me influenciou. Ouvia os discos que tinham os poemas até ficarem todos riscados. Felizmente o jornal “Público” reeditou o texto e os CD’s. Mas os excessos seriam certamente depois do espectáculo. Eu vi alguns espectáculos com o Mário Viegas e não o vi alcoolizado. O que distingue o actor amador do actor profissional?Costuma dizer-se que o actor amador é aquele que ama o teatro. Ama o teatro, mas tem o seu emprego e a sua estabilidade. O profissional é maluco, atira-se de cabeça. Por acaso nunca estive um mês desempregado, mas tenho muitos colegas que estiveram. Só um maluco é que envereda por esta profissão.Tem alguma superstição?Tenho muitas, mas não vou dizer quais são por uma razão muito simples: variam de espectáculo para espectáculo. Nunca são as mesmas. Mas ajuda. É como o nervoso antes do espectáculo. O que faz um actor quando está de folga? O actor vai ao teatro e ao cinema com regularidade? É como o escritor que tem que ler livros?Sim, acho que sim. Tem de ver teatro, embora confesse que ultimamente não tenho visto tanto como desejaria porque também às vezes acabo o dia e já chega de teatro. Ainda por cima quando tenho de manhã as televisões e à tarde, os ensaios e, à noite, espectáculos. E chego à noite e ainda tenho que estudar as cenas que tenho amanhã de manhã na televisão. É uma coisa que não é sempre assim, felizmente. Mas ver teatro é o alimento do actor. Os livros, a vida, andar na rua, ver. Sobretudo o actor tem que saber ver e ouvir. O actor tem que aprender a arte do voyeur. Também o livro é o alimento espiritual do actor, onde ele vai buscar a loucura e a fantasia. Na partilha dos outros, dos homens que escrevem. Tudo serve para nos enriquecer.O seu percurso de actor já dura há 22 anos. Faz alguma diferenciação entre a actividade teatral, televisiva e cinematográfica? São maneiras de trabalhar diferentes. São também linguagens diferentes. Entre teatro e telenovelas o que é que mais gosta de fazer?Teatro e novela são processos diferentes. Sobretudo gosto de papéis difíceis. Como aquela personagem em que incorporei um bêbado, sem abrigo, num espectáculo que fiz no Bairro Alto, em 2000. A peça chamava-se “Ao olhar para ti (renascido) de novo”. Uma encenação co-produzia pelos Artistas Unidos, pelo Jorge Silva Melo. Integrava-se num projecto a que se chamou “Sem Deus nem Chefe”. Também participei numa série que a RTP2 comprou sobre a vida do Manuel João Vieira, dos EnaPá 2000, onde faço uma personagem assim. Um tipo muito sujo, muito chunga… São as que me dão mais gozo fazer sempre. Esses papéis mais duros exigem muito desgaste físico e mental?Muito, muito! É horrível.E porque é que se gosta mais disso?É pelo desafio, pela luta que se trava com a própria personagem. Uma vez também fiz um monólogo de 1h20m. Chamava-se São Nicolau e foi apresentado no Teatro da Trindade, em Lisboa. Lembro-me que durante a noite acordava e dava por mim a dizer o texto.E a reacção das pessoas na rua? Não o associam ao mau, bandido e vagabundo?Fiz há pouco tempo, para um dos tele filmes da TVI, de violador de miúdos. Aí era mesmo mau. Foi uma coisa horrível de fazer (não por ser mau, mas pelo tipo de personagem que era) e aí sim, as pessoas na rua associam. Mas isso dura só dois dias, depois olham o actor noutra perspectiva.Há actores de teatro que assumem publicamente que só fazem televisão por questões financeiras. É o seu caso?Não. Embora tenha de reconhecer que essa ajuda financeira é importante. E que me era impossível viver só do teatro. Mas luto e debato-me para que os projectos que faço em televisão tenham qualidade. Muitas vezes não têm e eu tenho consciência disso. Mas não me rendo só por me pagarem melhor que no teatro. Chego a discutir com os tipos que escrevem os guiões para ver se eles os melhoram.Um meio complicadoO que é que é mais difícil: as cedências que tem que fazer no meio em que se está ou os personagens mais difíceis?Nunca pedi um papel a ninguém nem nunca tive de dar graxa a ninguém. Para conseguir os primeiros papéis levava a minha carta de apresentação. Foi assim que comecei na Malaposta onde a minha primeira personagem foi fazer de criado. Obviamente que há todo um processo. Há actores que começam logo por cima. Como é normal depois a queda é muito maior.Há pouco disse que era precisa disciplina para se estar no mundo do espectáculo, mas há uma ideia geral de que o mundo dos actores é um mundo precário, às vezes promíscuo. Fala-se de muitas drogas, sexo…Eu acho que isso é um mito. Talvez isso seja mais assim no cinema ou na televisão. No teatro acho que não é assim. Num trabalho normal as pessoas saem às seis e vão beber uns copos ou vão para casa tratar das suas coisas. No teatro os actores acabam à meia-noite, ou ainda mais tarde, e são capaz de beber uns copos também. Mas nunca vi ninguém alcoolizado ou drogado quando chega a hora do espectáculo. Ninguém consegue acabar uma representação e logo a seguir ir dormir. O actor movimenta-se muito na noite. Mas isso não quer dizer que todos sejam boémios. Longe disso.É fácil fazer-se amigos neste meio?Aqueles amigos, os verdadeiros amigos, não tenho muitos. No teatro acho que se pode fazer amigos. É natural que haja interesses, mas isso há em todos os lados. Eu fiz e continuo a fazer amigos no teatro.Vive com a Dora em união de facto há quase 20 anos, têm dois filhos. Quando ela o via aos beijos com a Sónia Brasão, por exemplo, nos Morangos, como é que reagia? Não é ciumenta?Ela sabe que isto é um dado do jogo…E se fosse ao contrário?Isto faz parte da profissão. Nós sabemos que não há mais nada além daquilo. Nos ensaios, em televisão, não damos os beijos. Só os damos na altura de gravar. Só por aqui pode ficar a perceber melhor o profissionalismo que pomos no que fazemos.E os seus filhos pensam seguir as pisadas do pai? Não, acho que não. Ela, por exemplo, quer ir para economia.Aconselha-os a seguir a carreira de actor?Aconselho, mas para isso eles vão ter de trabalhar muito. E o problema é esse. E a referência que eles têm é o actor dos Morangos, que fez o casting e tem uma carinha laroca. Eu digo-lhes sempre que não é assim, porque depois levam um pontapé. Incentivo, mas aconselho-os sempre a estudarem muito. E eles aí cortam-se logo.Os actores da geração “Morangos com Açúcar” têm que estudarO que acha da geração de actores Morangos com Açúcar?Alguns fizeram-se, mas a maior parte deles não são actores, ou explicando melhor, são actores que servem aquele projecto. É um actor com um “a” muito pequenino, porque tudo o que façam fora daquele projecto, daquela linguagem, noutro registo de personagem, o actor fica ali…Estou a dizer isto e não quero ser injusto com os meus colegas. Fiz os Morangos com muito agrado e juro que gostei de todos eles e gostei de trabalhar com aquela malta jovem. Gostei sinceramente, do fundo do coração, mas eles têm de estudar, eu dizia-lhes isso. E muito deles foram para escolas, inclusive para Nova Iorque.E actores da sua geração… A seu ver quem são os sucessores de Eunice Munõz ou Rui de Carvalho?Não há muitos. Há o Diogo [Infante], o Marco António, mas são mais novos. Há o PP Rapazote, mas também é mais novo. Há o José Neves, mas o que vai ser não sei. Gosta do Filipe La Féria?Eu estou aberto a tudo. Acho que o La Féria faz o seu trabalho e que há espaço para tudo. Não tenho nada contra ele. Eventualmente posso gostar mais de outro tipo de espectáculo. É um direito que me assiste.Não há no palco falta de encenações como a Mãe Coragem ou os Filhos de Kennedy? Não existirá também falta de crítica teatral nos jornais?Acho que não. Quanto à crítica, o próprio jornalismo se descuidou com o teatro. Antes dava-se mais atenção ao teatro. Sei de casos em que os jornalistas só têm autorização para entrevistarem actores se eles já tiverem aparecido na televisão. Enquanto leitor de jornais reconheço que há falta de um certo tipo de jornalismo onde as pessoas faziam opinião.A paixão pelo rio e a jangadaA regionalização do teatro é importante?É importantíssima. Nomeadamente a criação e recuperação de espaços para novos teatros. O [Manuel Maria] Carrilho, enquanto ministro da cultura, desempenhou um papel determinante.Há diferença entre o público mais urbano e o público mais rural?Acho que hoje em dia já não há grandes diferenças. Pensando no futuro, já se inscreveu na Casa do Artista, ou quer voltar à Chamusca para passar a reforma?Eu nem sequer penso nisso! Sou um dos primeiros sócios da Casa do Artista. E conto porquê. Foi graças à minha amiga Carmilda Gil. Ela era muito amiga do [Raúl] Solnado e foi uma das primeiras a angariar pessoas para a Casa do Artista. O que é que o Ribatejo significa para si?Vou ao Ribatejo sempre que posso. Ultimamente tenho ido mais porque o meu pai já está um pouco debilitado e tenho ido lá visitá-lo. A última vez fui buscar material para o espectáculo que estou a fazer. Parte do cenário vem de lá: caixas de fruta, um carrinho de mão que o Tó Zé Sequeira me emprestou… Gosto sempre muito de lá ir. Gosto muito de ver o rio.É o elemento que mais o marca?Vou sempre ao rio. Desde miúdo que gosto muito do rio. Porque me metia medo, ao mesmo tempo que ia para lá tomar banho. Às vezes ele está calmo e tranquilo, outras vezes está bravo. É um rio que é inconstante. Uma vez, em tempo de cheias, e eu e os meus amigos fizemos uma jangada à Tom Saywer.O encenador da “Canção do Vale”Jorge Silva fundou em 1999 uma companhia de teatro, o Teatro dos Aloés, em conjunto com Elsa Valentim e o José Peixoto. Neste momento Jorge Silva está embrenhado na montagem de um texto de Athol Fugard. Diz que é a primeira vez que vai encenar mais a sério. A peça chama-se Canção do Vale. Vai estar na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. De 6 de Novembro a 14 de Dezembro 2008.O início de uma carreiraComo é que o teatro surge na sua vida?Nunca me lembro de ter feito outra coisa na vida, à excepção de pequenos trabalhos pontuais nas férias. O início deu-se logo após o 25 de Abril, data que assinala o começo de muitas coisas, nomeadamente o entusiasmo pela música, pelo teatro, pelos grupos que chegavam à província, como o de Campolide ou A Barraca. Nessa altura houve muitos grupos que começaram a circular pelo país e eu, inevitavelmente, fui ver. Eu próprio me entusiasmei e quis experimentar. Na Chamusca, formámos um grupo, a Paródia, isto em 1975, era eu um miúdo. Começámos a fazer imensos espectáculos para adultos e para crianças, corríamos as zonas todas do concelho. Sobretudo aos fins-de-semana. Durante a semana estudava. Até que cheguei ao 12º ano e tive de optar. Optei por ir para a Escola do Centro Cultural de Évora. Teve alguém que o incentivou a ir para Évora?Sim. O Joaquim Benite, que entretanto montou um espectáculo na Chamusca, com o Grupo Borda de Àgua. Era uma peça muito poética do Lorca que se chama “Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim”. Funcionou muito bem e isso também me deu muito ânimo. Correu tão bem que não nos ficámos por ali, participámos em alguns festivais. Isto foi incentivador.Se os seus pais não vivessem bem em termos económicos teria seguido este caminho?O meu pai felizmente conseguiu ajudar-me quando eu estive em Évora, mas sempre me consegui desenrascar. Em Évora recebia uma bolsa e conseguia geri-la muito bem. Eles não se opuseram a tirar um curso na altura “mais marginal”?Não. Eles perceberam que era aquilo que eu queria. Foi um curso fácil?Tive um primeiro ano mais interessante que o segundo ano. Principalmente porque foi ali que bebi tudo de novo. Pus em prática o que lia nos livros. Tentei tirar o máximo proveito do curso. Ficaram colegas pelo caminho?Sim, alguns. Éramos uma turma de cerca de 20 pessoas e metade ficou pelo caminho. Naquela escola não havia faltas de presença. Cada um era responsável. Mas apesar de não haver faltas o director sabia quem ia e quem não ia. Quando alguém chegava atrasado o director convidava essa pessoa a sair. Dizia que o teatro é uma profissão muito nobre com a qual não se pode brincar, muito menos chegar atrasado.Nuca ouviu o comentário: “A sua irmã vai para médica, você vai para actor”, numa tentativa de desvalorizar a sua escolha de carreira?No início talvez sentisse um bocado isso, embora nunca mo dissessem. Mas percebo que para um pai ver um filho a seguir a carreira de actor possa parecer arriscado. Hoje é completamente diferente. Aliás, está na moda ser-se actor. É uma profissão conceituada e os miúdos sonham com isso. Mas na altura não o era. As pessoas perguntavam-me o que é que tu fazes? Eu respondia: Sou actor. E elas insistiam: Mas para ganhar a vida, o que é que tu fazes?Havia um certo preconceito?Havia. Em geral o actor era o doidivanas. E as actrizes eram ainda pior. E estamos a falar de há 20 e poucos anos atrás.Lembra-se da primeira personagem que representou?Sim, lembro. No grupo A Paródia, representámos dois textos. Um deles era O Ensaio. A peça era sobre uns actores que chegavam atrasados aos ensaios. Mas eu aí não era bem uma personagem. A primeira peça que realmente me marcou foi Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim do Garcia Lorca em que eu fazia o Perlimplim. Deu-me muito gozo. Quando chegou a Lisboa, foi fácil afirmar-se ou os seus colegas chamavam-lhe um provinciano? Tirar o curso na Escola do Centro Dramático de Évora ou no Conservatório de Lisboa é igual?Nunca senti nenhuma discriminação por ser um actor da descentralização. Acho que a aldeia global já funciona bem.Teve algum padrinho?Os padrinhos têm-se sempre no teatro. O padrinho é a primeira pessoa a quem nós damos a fala no primeiro espectáculo que fazemos. O meu penso que foi o Rui Peixoto. Canto e Castro e José Gomes são outros padrinhos, são pessoas que me marcaram bastantes.“Pancadinhas” aos temas menos queridosSugerimos ao actor Jorge Silva que criticasse alguns assuntos actuais atribuindo de forma figurada as famosas pancadinhas de Moliére aos temas que menos lhe agradam.Governo Nacional – 9 pancadinhas; Oposição – 10 pancadinhas; Cavaco Silva – 7 pancadinhas; Regionalização/ Descentralização – 0 pancadinhas; Bairro Alto – 3 pancadinhas; Televisão Pública - 5 pancadinhas; Televisões Privadas – 8 pancadinhas; Jornais Portugueses – 6 pancadinhas; Revistas Cor-de-Rosa – 10 pancadinhasUm artista multifacetadoJorge Silva trabalhou como actor profissional na Companhia de Teatro de Braga, Teatro da Malaposta, Artistas Unidos, Teatro Focus, Teatro da Trindade, AkaTeatro e Teatro dos Aloés. Participou em espectáculos de dramaturgos e escritores como Arthur Miller, Athol Furgard, Brecht, Garcia Lorca, Shakespeare, Almeida Garrett, Gil Vicente, José Cardoso Pires e Mário de Carvalho, entre outros. No cinema integrou o elenco de filmes como “Quando Troveja”, de Manuel Mozos, “Três Irmãos”, de Teresa Villaverde, “Adão e Eva” de Joaquim Leitão, “O Homem da Meia-Vida”, de António Escudeiro e “Cavaleiros de Água Doce” de Tiago Guedes de Carvalho. Jorge Silva é também presença assídua na televisão. Integrou os elencos de novelas como “Cinzas”, “Ganância”, “Jardins Proibidos”, “Senhora das Águas”, “Último Beijo”, “Amanhecer”, “Fala-me de Amor”, “Saber Amar”, “Queridas Feras”, “Morangos com Açúcar”, “Doce Fugitiva”, e “A Outra”. Participou ainda em programas como “Sim Sr. Ministro”, “Os Imparáveis”, “Nós os Ricos”, “As Aventuras de Camilo”, “Nico D’Obra” e “Malucos do Riso” e em séries como “Médico de Família”, “Os Polícias”, “A Raia dos Medos”, “Capitão Roby”, “Jornalistas”, “SOS Criança”, “Bairro da Fonte”, “Bastidores” e a “A Ferreirinha”.
“Um actor é um homem que arrisca”

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