Custódio Castelo e a procura incessante de uma nova voz e destino para a guitarra portuguesa
O rapaz de Almeirim que se apaixonou por um instrumento do fado muito antes de gostar de fado
Primeiro apaixonou-se pela guitarra portuguesa e só depois começou a interessar-se pelo fado. E para gostar do fado teve que o moldar a seu gosto. Custódio Castelo é um dos melhores guitarristas portugueses. Diz que está no mundo para ajudar a universalizar a música portuguesa sem lhe retirar a genuinidade.
Há seis anos, quando teve o problema no ombro e pensou que após a operação não poderia tocar mais, sentiu necessidade de gravar um disco como solista, “Tempus” e apresentou-o como “um documento”. O que tinha gravado nos discos dos outros, como acompanhador, não era suficiente como testemunho do seu trabalho? É como solista que se quer afirmar? Sou compositor, produtor discográfico e músico. Como músico a minha especialidade é acompanhamento. Eu estou nos discos de topo do país. O meu trabalho está ali.Se me consideram um acompanhador um pouco diferente isso tem a ver com a minha maneira de encarar as coisas. Com alguma exuberância musical, talvez. Amo aquilo que faço. Há artistas que a solo dão cento e vinte por cento e a acompanhar dão cinquenta por cento. Eu não. Eu dou tudo. Eu dou a alma em tudo o que faço. Mas gravou como solista naquela altura. Vai voltar a fazê-lo?Sim. É outra vertente do meu trabalho. Tenho um disco a solo pronto para editar que se chama “Ventus”. São temas inéditos de guitarra portuguesa. O seu trabalho está nos discos de artistas de topo, de quase todos os artistas de topo, dos mais antigos aos mais recentes como a Mariza ou a Ana Moura, mas também está em muitos discos que não são de topo. Porquê? É o meu lado humano. Eu não tenho coragem de dizer que não. Nesta altura estou a fazer um disco de um fadista amador que sempre demonstrou uma enorme vontade de gravar comigo. Artisticamente muita gente me aconselharia a não gravar aquele disco mas vou fazê-lo. Não é apenas esse. São vários. Ainda arranja tempo?O que pode privar-me de gravar com um fadista amador que por vezes canta com tanta ou mais dedicação que um profissional? É verdade que nem sempre tenho tempo mas muitos preferem esperar. E não são só amadores. A Raquel Tavares esperou três anos que eu ficasse bem da minha operação ao ombro para gravar comigo. Além disso um disco de um fadista amador tem sempre menos tempo de estúdio. Os profissionais têm mais tempo. Vamos para um estúdio e podemos estar lá quatro ou cinco meses. Os amadores têm duas tardes para fazer o disco e fazemos o melhor que pudemos.E revê-se naqueles trabalhos?Não me envergonho de nada que fiz até hoje. Dedico-me a esses trabalhos assim como me dediquei, com grande êxito, à carreira da Cristina Branco, que também, de certa forma, foi a minha carreira e um projecto de vida, naquela altura. Não é todos os dias que um produtor, compositor e músico - toquei nos discos todos - traz para casa dois discos de ouro e um de platina. Se fosse pessoa de ostentação não ligava aos artistas amadores. Mas sou pessoa simples e humilde. Voltando à questão inicial. O Custódio Castelo pode sentir-se melhor como acompanhador mas a sua guitarra não se contenta com um lugar secundário. A certa altura a guitarra portuguesa foi conotada exclusivamente com o fado. A guitarra servia o fado. Onde havia guitarra portuguesa havia fado. Os guitarristas estavam a servir de suporte, nem tinham direito a ter o seu nome divulgado. Num filme português dos anos 50 a certa altura o apresentador depois de dizer o nome do fadista tenta apresentar o guitarrista e diz qualquer coisa como: “À guitarra o famoso, o conhecido…o polidor”. O polidor era a profissão do senhor, não era nome. Hoje em dia não é assim. Se eu posso segurar algum estandarte, após 25 anos a tocar este instrumento, é o de ter contribuído para o levar a todo o mundo dando-lhe o devido destaque.O devido destaque não é fazer o que fez o Carlos Paredes, por exemplo, que não acompanhava. Que era um solista. Que transformou a guitarra num instrumento de concerto? O Carlos Paredes é o Carlos Paredes. Eu não sou comparável a ele. É desta diversidade que se faz a nossa cultura. É esta diversidade que torna a guitarra portuguesa tão rica. Eu faço questão de dialogar. Com cantores. Com músicos. Eu transporto o meu país no som da guitarra portuguesa mas a abertura que eu faço à guitarra portuguesa, leva a que atinja a universalidade.Depois de ter chegado ao fim a sua ligação à Cristina Branco surge o projecto Encores com a Margarida Guerreiro? Porque precisa de uma cantora?A voz é um complemento ao que eu faço melodicamente. Eu quero que a voz seja uma extensão do instrumento e vice-versa. O meu objectivo é criar um diálogo entre o instrumento e a cantora. Aí a guitarra não é um mero acompanhamento.Reclama um diálogo com os cantores? Com cantores e com outros instrumentos. Como já disse, o meu objectivo é universalizar este tipo de linguagem. Na adolescência descobriu a guitarra portuguesa e apaixonou-se por ela mas não gostava de fado. O seu interesse resumia-se ao instrumento. Utilizou-a para tocar rock ligada a um amplificador e com uma afinação igual à de uma viola. Qual é a sua relação actual com o fado?É verdade que com a guitarra portuguesa foi amor à primeira vista. E dediquei-me a ela com toda a minha alma. Quanto aos fados, foi realmente diferente. Tive que adaptá-los à minha maneira para poder gostar deles. Foi esse o percurso que me levou ao que eu sou agora enquanto músico e compositor. Recria esses fados?Não posso menosprezar aquilo que é a nossa raiz. Quando me pedem o Fado Mouraria ou o Fado das Horas eu toco-o na íntegra, como eu aprendi. E faço questão de respeitar. Está a responder aos que o acusam de não gostar de fado.Eu para amar o fado tive que lhe dar um cunho pessoal. Eu amo o fado…este fado. Não há da sua parte uma permanente tentativa de fuga ao fado? Depois das famosas fugas de Bach, as fugas de Custódio Castelo?! (Risos) Porque não? Há blues, Jazz, fado, morna…eu não defino a minha música como fado. A minha música é aquilo que eu sinto. Mas a sua música está quase toda em discos de fado. Por vezes há pessoas que vão comprar discos de fado que eu produzi e onde toco para ouvirem o que eu toco. Para verem as introduções que fiz para os fados; os sons que eu faço lá no meio. Às vezes em casos extremos, nem ligam a quem está a cantar mas apenas aos solos, contrapontos, etc. Procuram a guitarra?Procuram a minha guitarra. A minha música. Ainda tem alguma guitarra eléctrica?Está em casa da minha mãe…Para não ter tentações?Exactamente. É verdade. Uma vez disse que gostava de tocar um tema de homenagem ao Carlos Paredes numa guitarra eléctrica. Já o fez?Já e está gravado. Não sei se alguma vez será editada. Fui buscar a minha velha Gibson, liguei-a a um amplificador e toquei à Led Zeppelin ou Deep Purple. (Pega na guitarra portuguesa e faz um solo à guitarrista de rock).Os sons que florescem no Monte da Vinha Esta entrevista foi feita na cozinha da casa de Custódio Castelo, no Monte da Vinha, concelho de Almeirim, uma terra que não vem no mapa, que integra um pequena grupo de casas ao longo de uma estrada de terra batida debruada a ninhos de cegonha. O guitarrista preparou um café e foi buscar as suas duas guitarras. A mais antiga, com fundo em madeira e a mais moderna, sem fundo. Quando lhe faltavam palavras pegava na que usa actualmente e tentava explicar-se através da música. O que fica aqui reproduzido são apenas as palavras. É pouco para perceber o entrevistado. Muito pouco. Mesmo lendo a entrevista ao som do CD “Tempus”, o seu único disco a solo – um segundo está a caminho – não se consegue perceber tudo. Há muito trabalho do guitarrista espalhado por dezenas de discos de fado. Entradas, solos, rendilhados, contrapontos. Um universo de sons. Há outros projectos em marcha como o Encores, com Margarida Guerreiro e o Custódio Castelo Trio que ainda há dias abriu um festival de jazz. Talvez se pudesse dizer que falar de Custódio Castelo é falar de uma guitarra portuguesa inquieta insubmissa e apaixonada. Talvez…“Na minha infância tive um cão…”O Ribatejo onde nasceu e vive tem alguma influência na sua música?Um dia estava a tocar com o Richard Galliano (acordeonista argentino) em Washington. Ele estava a improvisar e começou a tocar Verano Porteño do Astor Piazzolla. Mal ouvi aquelas notas respondi-lhe com o fandango. Alguém que não fosse ribatejano iria associar o fandango à música argentina do Piazzolla? No estrangeiro chamam-me o guitarrista da capital do Gótico (Santarém), embora eu tenha nascido em Almeirim. Não nasceu aqui no Monte da Vinha.Nasci no hospital de Almeirim, mas sou daqui. Este é o cantinho mais bonito do mundo. É aqui que faço as minhas composições. É aqui que respiro ar puro. Aqui tenho a concentração máxima. Se Deus quiser será sempre aqui que viverei. De vez em quando parto mas levo sempre o Monte da Vinha no coração.No seu disco a solo “Tempus” (2004) tem temas como Amesterdam, Velho Fado de Lisboa, Dança em Tango, Sinos de Waibel, mas não tem nenhum sobre o Ribatejo ou sobre o Monte da Vinha.Não fez bem o trabalho de casa (risos)Qual é o tema?É o último do disco, “Fado do Monte”. Tem um pequeno texto no disco “Na minha infância tive um cão…com ele brinquei, aprendi, guardo-o na memória”. Há um fado do Ribatejo? Havia o chamado fado marialva. Tinha mais a ver com as palavras do que com a música. Mas nós temos o privilégio de ter grandes músicos. Tem algum a tocar consigo?Corri mundo com o Carlos Velez e agora tenho o Carlos Garcia, filho de um artista da cidade de Santarém, José Carlos Garcia. O Carlos é um dos melhores guitarristas de viola clássica que temos em Portugal. Toco com ele e com um contrabaixista clássico, Carlos Menezes. É alentejano, esteve na Orquestra da Gulbenkian e tem um pé no jazz. Somos o Custódio Castelo trio. Eles os dois e o Custódio Castelo que não se sabe muito bem o que é. Pioneiro da guitarra sem fundoCustódio Castelo toca numa guitarra sem fundo (sem costas) criada pelo guitarreiro Óscar Cardoso, um dos mais conceituados construtores de guitarras portuguesas, com oficina no Casal do Privilégio, em Odivelas, conhecido também pelas experiências e inovações ao nível da construção de instrumentos. “Sou a primeira pessoa desta experiência de uma nova guitarra. A minha guitarra sem fundo é o modelo zero. Foram seis anos de experiências e estudo do Óscar Cardoso”, diz com visível orgulho. “Quando falei com o construtor sobre esta ideia ele disse que eu era maluco. Agora já há muitos guitarristas a tocar com guitarras como esta. Estou mesmo convencido que se o Mestre Carlos Paredes ainda fosse vivo e tocasse, gostaria de tocar numa guitarra assim”, acrescenta entusiasmado. Para explicar ao jornalista a diferença entre o som produzido por uma guitarra tradicional e a sua nova guitarra vai buscar a guitarra sem fundo e trás também a sua antiga guitarra, construída por Manuel Cardoso (já falecido), pai de Óscar Cardoso. Depois toca um trecho de um tema de Artur Paredes (pai de Carlos Paredes) alternadamente numa e noutra.Entusiasmado tenta explicar por palavras o que acabou de explicar através do som. “Nesta guitarra sem fundo, com a abertura nas costas rematada a fibra de carbono, o som é mais rápido. Dou uma nota e tenho a resposta imediata, sem perdas, enquanto que na guitarra tradicional, com fundo, ele vai reverberar na caixa e depois é que sai pela abertura da frente”. O interior da nova guitarra está repleto de autógrafos de artistas portugueses e estrangeiros com quem se cruzou. Jorge Fernando, Ana Moura, Joana Amendoeira, Mick Jagger…pega outra vez na guitarra e toca a entrada de “Verdes Anos” de Carlos Paredes. O som dá outra dimensão à pequena cozinha da casa onde o café fumega nas chávenas. “Esta é uma guitarra de concerto. Fazes um concerto numa igreja e o espaço funciona todo como uma enorme caixa acústica, cinquenta ou mil vezes maior que a caixa do instrumento”.
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