“O discurso do capitão de Abril e da revolução traída faz bem à alma mas não corresponde à realidade”
Carlos Matos Gomes diz que ao longo do tempo se foi criando uma verdade oficial sobre o 25 de Abril
Chama-se Carlos Matos Gomes, é natural de Vila Nova da Barquinha e foi um dos fundadores do movimento dos capitães que fez o 25 de Abril. Tem vários livros escritos sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz. Tem um discurso firme contra a lamúria e assume que não gosta do discurso da revolução traída. Sustenta que ao longo dos anos foi construída uma verdade oficial sobre a chamada revolução dos cravos que não corresponde ao que efectivamente se passou.
Algumas pessoas, confrontadas com a situação actual, dizem que faz falta outro 25 de Abril. O que pensa disso?Eu não tenho nada essa ideia de que é preciso fazer outro 25 de Abril ou que não era este o 25 de Abril que nós queríamos. Este foi o 25 de Abril que conseguimos fazer. Que a sociedade portuguesa conseguiu fazer. Se temos alguma coisa para reclamar é do facto de não termos conseguido fazer melhor. A acção em vez do lamento?Mais importante que o lamento é a geração que fez o 25 de Abril encontrar forças em si mesma, para solucionar os grandes problemas que são da sua responsabilidade para conseguir passar uma situação melhor à geração que vem a seguir. É esta geração que tem estado no poder, desde a Presidência da República às autarquias que pôs os portugueses todos a viver no litoral, que criou um Portugal betonizado, etc... Somos responsáveis por encontrar soluções.A utopia de uma sociedade justa e perfeita esfumou-se? Os momentos de crise são os momentos propícios ao aparecimento de oportunistas populistas e demagógicos. E a esquerda, que é a que se reclama mais veementemente do 25 de Abril, tem que ser capaz de encontrar soluções sensatas, de compromisso, para fazer o que é possível e não o que idealizámos porque o que idealizámos não é possível concretizar. Não alinha no discurso do 25 de Abril traído. É isso? Esse discurso do capitão de Abril, da revolução traída, do não foi para isto que fizemos o 25 de Abril, faz bem à alma, principalmente numa situação de crise como a actual, mas não corresponde à realidade. O que é isso do “discurso do capitão de Abril”?É interessante analisar a forma como vamos evoluindo no pensamento e como vamos assumindo como verdade certas coisas que nunca aconteceram. Está a dizer que se fabricou uma verdade oficial?Exactamente. Criou-se uma verdade oficial que é a de que se fez uma revolução no 25 de Abril e que a ideia era essa. Esse é o tal discurso do chamado capitão de Abril. Justiça para o povo, etc, etc. É um pouco o discurso da Revolução Francesa. Igualdade, liberdade, fraternidade. Esse discurso, se nós o formos analisar, não tem nenhuma correspondência com a realidade. A realidade do 25 de Abril tem a ver com aquilo que é o documento fundador, que é o Programa do Movimento das Forças Armadas. Não se preparou uma revolução? Não está em nenhum sítio nada que prefigure uma situação revolucionária. O que está ali claramente proposto é a implantação de um regime democrático representativo, está indiciada uma solução para o problema colonial, que era a questão fulcral, e está uma outra questão que para nós era muito importante em termos corporativos que era a dignificação das Forças Armadas. É isto que ali está.Mas há um processo revolucionário a seguir ao 25 de Abril de 1974.O processo revolucionário inicia-se e desenvolve-se por necessidade. Por falência ou colapso de instituições, os problemas surgem à porta dos autores do processo que ainda por cima eram facilmente identificáveis porque andavam fardados e estavam nos quartéis. A polícia deixou de agir. O sistema judicial quase desapareceu. E em quase todas as instituições ninguém tinha meios para agir. Quem passou a ter meios e autoridade foram os militares. Os problemas apareceram e nós fomos tentando resolvê-los. A revolução começa aí. É uma revolução que se vai fazendo porque nos puseram coisas à porta. Como vê a geração pós 25 de Abril? Vejo-a com um misto de mágoa e de grande esperança. É uma geração mais bem preparada que a minha, a que fez o 25 de Abril, mas mais desamparada. E essa geração tem que reclamar contra esta burocratização e esta estatização que permite que uma parte da sociedade tenha empregos permanentes, fixos e relativamente bem remunerados no Estado e no aparelho do Estado, e a grande maioria esteja em situação precária. Aquilo que não é, definitivamente, o 25 de Abril, é a luta do funcionário público, dos empregados do Estado. Aquilo que vai ser o 25 de Abril é a luta daqueles que estão nas actividades mais produtivas e criativas e que têm que alimentar o aparelho do Estado e a sua burocratização.Nota: Esta entrevista é o resultado de questões colocadas ao entrevistado por O MIRANTE e pelos apresentadores do espectáculo/tertúlia “Fatias de Cá Bar É” (Paula Junqueira e Carlos Carvalheiro), em Constância, no dia 16 de Abril de 2009.O apelo de África não existeQuem esteve em África diz que sente durante toda a vida o apelo de África. Um chamamento. Passa-se isso consigo?O chamado apelo de África é uma ficção, embora seja uma boa ficção. É sobretudo a lembrança dos vinte anos. Tínhamos vinte anos e isso era excelente. Ainda por cima ter vinte anos em África que é um sítio desconhecido, fantástico, maravilhoso. Aos vinte anos estávamos a viver uma aventura maravilhosa. Penso que é essa lembrança que nos faz, hoje em dia, ter esse tipo de fascínio. Isso no caso dos jovens que foram cumprir o serviço militar nas ex-colónias. E as outras pessoas?Mesmo aquelas pessoas que vieram de África, os chamados retornados, embora muitos não tenham retornado porque nunca cá tinham estado em Portugal… mesmo essas famílias africanas, se nós repararmos, estiveram muito pouco tempo em África. A nossa presença nestes territórios de Angola e Moçambique, foi relativamente curta. A convenção de Berlim e a definição das fronteiras das colónias é no final do século dezanove. A guerra naqueles territórios começa em 1960. É isso que permite que o regresso dos retornados e a sua reintegração se tenha feito sem grandes traumas. Não está a aligeirar a situação?Houve traumas, é claro que houve traumas. Mas muito menores que noutros casos porque não havia um vínculo identitário. Para aquelas pessoas, Angola e Moçambique não eram as suas terras. Elas tinham uma mentalidade de emigrantes. Retornariam sempre ou tentariam sempre voltar ao seu país de origem, ao contrário do que fizeram os ingleses na África do Sul, na colónia do Cabo, ou nas Rodésias.“A guerra colonial é o acontecimento histórico mais estudado desde a fundação de Portugal”Nos aniversários do 25 de Abril fala-se muito de Salgueiro Maia. É o mais consensual dos capitães porque está morto?Eu era amigo de infância do Salgueiro Maia. Andei com ele no colégio em Tomar. Fizemos a Academia Militar juntos. Estivemos juntos na Guiné. São justas as homenagens que lhe são feitas pelo seu papel no 25 de Abril.Mas é sempre mais fácil o reconhecimento depois da morte.É uma situação muito portuguesa mas se calhar é uma situação justa. É preferível assim do que assistir, por exemplo, à promoção incompreensível e extemporânea do Jaime Neves a General. Não era nada disto que tínhamos acordado entre nós. Todos os que fizemos o 25 de Abril tínhamos como compromisso de honra, entre nós, não fazer aproveitamento pessoal da nossa intervenção. Como viu a mudança da Escola Prática de Cavalaria de Santarém para Abrantes?Para os militares isso não é importante. Deve ser importante para a sociedade e para os portugueses. Devem ser feitas as mudanças que devem ser feitas e as que são necessárias. Quando se fazem mudanças sem sentido elas traduzem-se em gastos e em desperdício. E os gastos são pagos por todos nós. Para os militares é indiferente estarem a exercer a sua função em Santarém Abrantes, Viseu, Tancos ou Tomar. Os cidadãos é que devem interessar-se por aquilo que lhes diz respeito. Pelo que diz respeito ao dinheiro dos seus impostos, que é o fruto do seu trabalho e dos seus sacrifícios. Não sei se a eficiência das forças armadas melhorou com a passagem da Cavalaria de Santarém para Abrantes. Mas era importante que os chefes militares e quem tomou essa decisão a explicasse. Ficou mais barato e melhor? É isso que lhes devemos perguntar.Alguns ex-combatentes dizem que não se fala da guerra colonial. O senhor tem sete livros publicados e a maioria deles fala da guerra. Como recebe essas queixas?O lamento pelo lamento é uma coisa muito portuguesa. Como sabe aqui em Portugal ninguém está de saúde. É uma ofensa perguntar a uma pessoa se ela está bem. Nós nunca podemos estar bem. E daí que digamos sempre que não se fala suficientemente da guerra. Mas também não se fala suficientemente da economia e também não se fala suficientemente de muitas outras coisas. Fala-se bastante sobre a guerra?Relativamente à guerra, julgo que não há nenhum acontecimento histórico desde a fundação de Portugal que tenha sido tão estudado, analisado e sobre o qual haja tanta coisa escrita. Isso faz sentido na medida em que o 25 de Abril permitiu que, sobre este período tão marcante, se pudesse escrever, filmar, pintar e dançar, livremente. E os portugueses aproveitaram essa liberdade para produzirem obras sobre a guerra colonial. O drama é que há pouca gente que leia, que vá aos filmes sobre a guerra colonial, ao teatro, etc. E são esses que não lêem e não vão aos espectáculos que depois dizem que se fala pouco sobre o assunto.Muitas vezes a guerra colonial, em termos de romance, poesia, etc, é tratada com humor. O senhor, enquanto escritor, por exemplo, tem um livro que é cáustico do princípio ao fim, “Soldadó”. Qual a razão? A guerra dá vontade de rir?As guerras são feitas por homens e os homens são como as fisgas. Não conseguimos manter os elásticos das fisgas permanentemente tensos porque senão eles rebentam. O humor, mesmo nas situações mais difíceis, é utilizado como uma forma de descompressão. A escrita pícara à volta da guerra aqui não é muito vulgar. O “Soldadó” é quase um exemplar único. Mas há muitos casos noutras línguas. O Valente Soldado Chveik do Jaroslav Hasek, por exemplo. O D. Quixote de Cervantes. Esta fuga para o humor em tempo de guerra é também uma fuga à realidade. Matos Gomes e Vale Ferraz Carlos Matos Gomes, nasceu em 24 de Julho de 1946, em Vila Nova da Barquinha e foi oficial do exército, cumprindo comissões durante a guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné nas tropas especiais “Comandos”. É actualmente coronel na situação de reserva. Fez os estudos secundários no Colégio Nun’Alvares de Tomar e o curso de Cavalaria da Academia Militar. Paralelamente à carreira militar tem desenvolvido desde 1983, data da edição do romance “Nó Cego”, uma continuada actividade literária. Como romancista, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz, publicou, além do referido “Nó Cego”, os romances “ASP - De Passo Trocado”, “Soldado”, “Os Lobos Não Usam Coleira” - adaptado ao cinema pelo realizador António-Pedro Vasconcelos com o título “Os Imortais”, “O Livro das Maravilhas”, “Flamingos Dourados” e “Fala-me de África”. Este último como resultado da escrita para a RTP da série “Regresso a Sizalinda”.No âmbito da história contemporânea é co-autor, com Aniceto Afonso, das obras “Guerra Colonial” e “Portugal e a I Grande Guerra” editadas em fascículos pelo Diário de Notícias. É co-autor, com Fernando Farinha, da obra “Repórter de Guerra”, da Editorial Notícias. É ainda autor da obra “Nó Górdio – Moçambique 1970”, da Colecção Batalhas de Portugal editada pela Tribuna da História.No cinema foi autor do argumento do filme “Portugal S.A.” do realizador Ruy Guerra, foi colaborador de Maria de Medeiros no filme “Capitães de Abril” e de Joaquim Leitão nos filmes “Inferno” e “20.13 – Purgatório”. Participou ainda na área do áudio visual na ficção “Conta-me Uma História” de João Botelho. Foi consultor da série de três documentários para televisão “Isto Aconteceu” produzidos por Pedro Efe e da série “A Guerra” de Joaquim Furtado. Participou nas séries documentais da SIC e da RTP sobre o Século XX.
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