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A vida particular de Manuel Lousada confunde-se com a sua vida desportiva

A vida particular de Manuel Lousada confunde-se com a sua vida desportiva

Aos 90 anos cheios de vitalidade continua a defender a arbitragem e a cidade de Santarém como se defende um grande e verdadeiro amor
“Nasci filho de um pai rico. Mas quando ele morreu, tinha eu 17 anos, verificou-se que afinal estava, como se costuma de forma pouco académica dizer, teso”. Manuel Lousada Rodrigues, aponta para uma fotografia, onde ainda jovem ostenta numa camisola preta de árbitro de futebol as insígnias da FIFA, o emblema que garante que um árbitro atingiu o ponto mais elevado da arbitragem a nível mundial. “Vivi descontraído até aos 17 anos. Era pequeno e reguila. Vim do Vale de Santarém para a cidade com dois anos, e sempre amei e tentei dignificar esta terra. Ninguém pode depreciar Santarém perante mim, sou um leão a defendê-la”.Manuel Lousada tem 90 anos. Trabalhou toda a sua vida, mas apenas teve três empregos. O pai era proprietário de um bloco de casas na zona onde hoje se encontra o W Shooping, “Mas sem ninguém saber o meu pai tinha-se comprometido em algumas situações de dinheiros emprestados e quando faleceu encontrei-me pobre, e tive que ir trabalhar para ajudar a minha mãe e a minha irmã”.“No trabalho fui sempre singrando, graças a Deus. Apenas tive três empregos. Tinha pouco mais de vinte anos, entrei para um dos maiores armazéns de Santarém. Com a garra e vontade de trabalhar que sempre tive, cheguei a sócio com uma cota de dez por cento. Trabalhei ali até 1969, altura em que o sócio maioritário resolveu fechar portas”.Não ficou parado, entrou para outra empresa em 1970, para a Silgás, onde se manteve até aos 77 anos. Depois de se reformar aos 65 anos.Não teve filhos. Mas isso não o impediu de ter ajudado a criar pelo menos três crianças, que hoje são adultos com a sua vida estabilizada. “Eu e a minha esposa sempre gostámos de ajudar os outros e vivemos essa ajuda com intensidade. A sua morte deixou-me algo debilitado, mas soube reagir e hoje tenho uma companheira que me ajuda muito a continuar a viver com intensidade o dia-a-dia”. Lado a lado com o trabalho praticou desporto. E foi aí que se notabilizou. Apesar da sua pequena estatura, Manuel Lousada foi praticante federado de basquetebol, futebol e ténis de mesa. Jogou nos melhores clubes do distrito. “Fui campeão distrital e de zona e finalista nacional em todas estas modalidades. Joguei nos “Leões” de Santarém, no Ferroviários do Entroncamento e nos Empregados do Comércio. Até que surgiu a arbitragem, e aí sim encontrei a minha verdadeira vocação”.Não perdeu a conta aos jogos em que participou. “Antigamente era mais difícil ser árbitro. Decidi avançar para a arbitragem no dia em que Maximino da Graça, um árbitro de então, me anulou um golo, que eu entendi sem razão. Na altura não disse nada, mas mais tarde encontrei-me com ele em Santarém, e disse-lhe um dia hei-de ser árbitro e melhor que você. E quando deixei o futebol, em 1947 tirei efectivamente o curso de árbitro”.Manuel Lousada era então um homem com 29 anos, e foi o João Portugal que o levou para Almeirim para arbitrar o primeiro jogo. Não era nada como é agora, em que todos têm as melhores condições. “Mas as coisas correram bem e decidi avançar para o curso de árbitros”.“Foi a melhor coisa que me aconteceu na vida”. Manuel Lousada, como em tudo o que se meteu na vida, teve uma progressão acelerada. Três anos depois chegou à terceira divisão nacional, no ano seguinte à segunda. E em 1953/54 estreou-se na Primeira Divisão Nacional, e logo a arbitrar um Futebol Clube do Porto – Sporting Clube de Portugal. “Que correu muito bem, mas o Porto venceu 1-0 e depois vim a saber que o golo foi obtido de forma irregular”. Embora com menos visibilidade os erros do árbitro já eram contestados com grande intensidade. “No final do jogo e quando me dirigia para os balneários, alguns jogadores do Sporting, o Travassos, o Vasques e outros craques, chamaram-me alguns nomes menos próprios, e eu não o deixei passar em claro, e eles foram castigados”.Começou assim uma carreira deveras importante, que o levou à internacionalização em 1961. Mostra um emblema de ouro e uma fotografia a preto e branco do Manchester United. “Hoje está na moda, mas eu estive lá em 1962, e já era um dos grandes de Inglaterra. Tinha jogadores como o Bobby Charlton, George Best e muitos outros, e saí de lá em grande”.Tentamos puxar a conversa para outro tema, mas Manuel Lousada estava embalado para o “seu grande amor”, a arbitragem e as possibilidades de mudança tornaram-se quase impossíveis. Mostra com afã envelopes de todos os jogos que realizou, aponta fotografias em que se vêem os melhores jogadores da época e acaba por contar com alguma tristeza, a forma como durante seis meses lhe foi retirado o estatuto de internacional. “Foi uma maldade do presidente da Comissão Central de Arbitragem, Maia Loureiro”.“Apitei jogos em muitos países”. Vai buscar fotos de jogos na Madeira, Açores, Guiné, Cabo Verde, Espanha, França, Itália, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Irlanda. Corre de um lado para o outro, “esta aqui foi num jogo disputado à chuva, não era fácil, mas eu um fraca roupa, nunca deixei de enfrentar os matulões dos ingleses de frente”, diz com ânimo. Mas para Manuel Lousada, o grande momento da sua vida como árbitro foi quando foi nomeado para arbitrar os jogos da fase final do campeonato da Grécia. “Estive lá alguns dias, fui tratado como um rei. Fiz excelentes arbitragens. Quando regressei trouxe comigo a certeza de que a arbitragem portuguesa ficou com uma excelente imagem na Grécia”. Observador, formador e membro da Comissão Técnica de ArbitragemQuando chegou ao fim a sua carreira de árbitro a sua vida não alterou o rumo. Continuou ligado à arbitragem como observador, formador e membro da Comissão Técnica da Arbitragem Nacional e Internacional. E também aí o êxito foi enorme. Manuel Lousada ocupou os mais altos cargos na formação da arbitragem nacional.É por isso que vê com apreensão que hoje não há ex-árbitros nessas funções. “Para se analisar a prestação de um árbitro é necessário ter andado lá dentro, é preciso saber as dificuldades próprias de arbitrar um jogo num terreno encharcado e num terreno seco. É preciso analisar as diferenças, o que infelizmente não acontece hoje”.“Isto não quer dizer que a arbitragem de hoje não seja melhor do que a de antigamente. Agora os árbitros têm todas as condições, são na maior parte dos casos homens com formação académica e ganham muito bem. Mas é necessário não deixar fugir os bons árbitros e que os façam continuar ligados à arbitragem”.Talvez por ter feito uma análise e interpretação muito forte das leis de jogo, Manuel Lousada não alinha muito com aqueles que lutam pela introdução de novas tecnologias no futebol. “No dia em que os jogos começarem a ser arbitrados por máquinas o futebol morre”, garante. Condecorações e louvores são o reconhecimento da sua verticalidadeApesar da vida agitada, Manuel Lousada teve sempre uma postura de grande dignidade, lutou sempre para que houvesse justiça no futebol. Nunca abandonou os árbitros do seu distrito, a sua porta esteve e está sempre aberta para quem procura a sua ajuda. Na lucidez e experiência dos seus 90 anos, aconselha sempre a que nunca percam a verticalidade, olhem os problemas de frente e reajam sempre com frontalidade.“Às vezes podemos perder a partida, podemos parecer que somos prejudicados por isso, mas quase sempre a verdade vem ao de cima e a justiça é feita”, garante ao mesmo tempo que diz que as condecorações e louvores que recebeu foram fruto dessa sua forma de estar.Manuel Lousada pega na Medalha de Mérito Desportivo que lhe foi atribuída pelo Ministério da Educação e diz que por ser atribuída pelo ministro é a mais valiosa. Mas garante que o facto de ter sido considerado o melhor árbitro do ano em 1961, ter sido galardoado com as insígnias da FIFA em 1967, a medalha de bons serviços desportivos da Comissão Central de Árbitros e da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, a Medalha de Ouro ao Mérito da Federação Portuguesa de Futebol, a elevação a sócio de mérito e sócio honorário da Associação de Futebol de Santarém, e a placa de Bons Serviços e Mérito atribuída pela Câmara Municipal de Santarém, “marcam decisivamente a minha já longa vida nesta terra”. E junto com as dezenas de outros louvores que recebeu, comprovam que foi no desporto e principalmente na arbitragem que Manuel Lousada Rodrigues marcou bem a sua vida particular que correu em paralelo com a desportiva. Um lamentável lapso de interpretação levou a que na notícia do almoço de homenagem que vai ser prestada a Manuel Lousada, incerta na nossa última edição, fosse referido que o senhor fosse dado como recentemente falecido. Penitenciamo-nos pelo erro. E neste trabalho sobre a sua vida, mostramos que Manuel Lousada está bem vivo e apesar dos seus 90 anos, cheio de saúde e energia. “Os tostões foram para o Salamanca, era muito pobre mas muito amigo”Manuel Lousada nunca foi um homem rico. “Vivi sempre entre o pobre e o remediado, os tostões eram contados dia a dia, foi a arbitragem que me deu a possibilidade de visitar uma boa parte do mundo. E também de ajudar alguns amigos, entre eles o Salamanca, que jogou futebol comigo no Ferroviários do Entroncamento”.Em 1940 Manuel Lousada foi para a tropa para o Entroncamento, e ali encontrou um amigo do futebol. “Era o Salamanca, um bom guarda-redes na altura, era um rapaz muito pobre”, emociona-se ao falar do amigo. “O filho dele é hoje presidente de junta na Ribeira”.Salamanca convenceu Manuel Lousada a voltar ao futebol. “Joguei no Ferroviários, mesmo depois de acabar a tropa, ia para o Entroncamento de comboio. Não ganhávamos nada. Mas os dirigentes do clube davam-me um bilhete para ir ao cinema, e eu oferecia-o a Salamanca para ele vender para arranjar mais uns tostões. Eu gostava muito do Salamanca e ele vivia com muitas dificuldades”.A maior desilusão foi ver João Enoch deixar a arbitragemManuel Lousada garante que teve poucas desilusões na vida, na arbitragem ainda menos. Por isso considera que não ter conseguido demover João Enoch de deixar a arbitragem foi a sua maior desilusão.João Enoch chegou até Manuel Lousada a pedido de Vítor Correia, queria aprender para singrar na arbitragem. Lousada viu nele capacidades importantes para chegar longe. “Queria aprender, tinha uma vontade enorme para trabalhar. Tinha uma grande vantagem por ter sido jogador de futebol na segunda divisão nacional. Sabia interpretar muito bem as leis de jogo. Mas foi a exame em Lisboa e ficou no segundo lugar do distrito de Santarém, o primeiro foi o Brites Lopes. Santarém só metia um e embora tenha passado no exame, não subiu”.Foi então que Manuel Lousada fez um dos únicos dois pedidos que fez na arbitragem. “Aproveitei um almoço com o então presidente do Conselho Nacional de Arbitragem, e pedi-lhe para ver se conseguia subir o Enoch. Ele prometeu-me que sim ia ver o que podia fazer. Infelizmente o meu pedido não teve êxito, e o Enoch não subiu e deixou a arbitragem. Essa é uma das maiores mágoas que tenho de toda a vida ligada à causa, porque tenho a certeza de que ele iria muito longe na arbitragem nacional”.
A vida particular de Manuel Lousada confunde-se com a sua vida desportiva

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