As memórias de uma rua tradicional de Vila Franca
“Rua direita” já foi o principal ponto de passagem da cidade
Os mais velhos partilham as suas memórias com medo que o tempo as apague. Os novos falam de uma rua “gira”, “acolhedora” e “maternal”. O MIRANTE entrou na máquina do tempo para (re)descobrir a rua que viu nascer Vila Franca de Xira.
Nos anos 40 e 50 a rua Dr. Miguel Bombarda, eternamente conhecida por “rua direita”, era uma das mais importantes artérias da cidade de Vila Franca de Xira. A alcunha deriva do facto de, mesmo sendo uma rua “torta”, permitir o percurso mais “a direito” para atravessar Vila Franca de Xira.Os carros usavam-na para atravessar a localidade e muitas das trocas comerciais eram feitas por essa via. Os estendais estavam cheios de roupa a secar ao sol. Nas varandas e à porta de casa grelhava-se peixe, capturado mesmo ali ao lado, nas águas do Tejo. Nas maçanetas das portas o padeiro deixava o saco do pão, feito de tecido, aos seus clientes. A maioria dos anexos das casas, nos telhados, era habitado. Toda a gente se conhecia e o ambiente era de amizade.Hoje a rua está fechada ao trânsito e só os (poucos) moradores ou os turistas têm acesso. Muito mudou na rua, mas quase nada no espírito e carisma que esta ainda emana. Tomando como ponto de partida o acervo fotográfico do Museu Municipal de Vila Franca de Xira, arranca no dia 3 de Julho, no Celeiro da Patriarcal, a exposição “Ruas da Memória”, que apresenta fotos originais de uma Vila Franca de outros tempos. O principal destaque das quase 67 imagens a preto e branco vai para a rua direita. Na varanda da casa amarela, recentemente pintada, está Artur Mateus, 76 anos. Corta as unhas com um canivete, tal como fazia antigamente. “Quando aluguei aqui a casa pagava dois contos, o que era uma fortuna para a época. Mas em compensação estava no melhor sítio da cidade”, diz com orgulho. Nasceu em Vila Franca e aí se fez homem. “Antigamente tinha a porta no trinco, qualquer pessoa entrava, porque eu conhecia toda a gente aqui da rua. Tinha amigos que, quando precisavam de ovos, entravam aqui em casa e tiravam. Havia muita amizade”, recorda. Hoje as coisas são diferentes. “Os velhotes estão a ir embora e os novos não querem morar aqui porque não têm estacionamento para os carros. O barulho dos bares que entretanto se instalaram na rua também os afasta”, lamenta. A artéria, dizem os mais idosos, perdeu o brilho quando o trânsito foi proibido. “O empedrado melhorou o aspecto da rua, mas matou a sua vida”, acusam. Encontrámos na rua direita Aurora Cunha, 85 anos. “O café ao lado da minha casa foi o primeiro a ter uma televisão, a preto e branco. Era uma festa, juntávamo-nos todos para ir para lá. Naquele tempo os carros eram bem menos e dava para ficar às vezes no meio da rua a brincar. Eu adorava”, recorda Aurora com um sorriso de felicidade. Subitamente recorda-se da má notícia: “Cinco ou seis anos depois de comprar a televisão o dono do café morreu e o estabelecimento fechou”. Uma das memórias mais marcadas entre os anciãos da rua tem a ver com as festas. “Enfeitávamos as varandas, tentávamos sempre dar um brilho à festa do colete, ou às esperas de touros, era muito giro. Hoje em dia não há nada disso. Perdeu-se a tradição...”, recorda uma moradora.Para os jovens a rua direita é conhecida pela animação. “É um excelente local para ir beber um copo com os amigos. É o bairro alto de Vila Franca, cheio de tradição e significado”, defende Rui Francisco, 19 anos. “Não conheço a história da rua mas acho que é, sem dúvida, uma rua bonita”, conclui. Outro jovem, Pedro Marques, 25 anos, ouvido pelo O MIRANTE, diz que é “uma rua catita” com gente acolhedora, simpática e “sempre disposta a ajudar o próximo”. Como tantos outros jovens não faz ideia de que a rua foi tão importante para Vila Franca de Xira. “Mas de certeza que no futuro a rua onde moro também vai ser diferente. Por isso só tenho de estar preparado para aceitar essa diferença”, conclui.Preservar a memória em 56 mil fotosAté ao dia 2 de Agosto vai ser possível visitar gratuitamente, no Celeiro da Patriarcal, em Vila Franca de Xira, a exposição de fotografia “Ruas da Memória”. A exposição exibirá 67 fotos do acervo fotográfico do Museu Municipal, cujo arquivo tem mais de 56 mil fotos. Os visitantes vão poder observar imagens raras de uma Vila Franca de antigamente, com destaque para a rua direita, Serpa Pinto, Palha Blanco (actual Alves Redol), rua 1º Dezembro, praça Afonso de Albuquerque e ainda o largo Marquês de Pombal. “Todos nós temos a memória da rua onde crescemos e onde vivemos. E constitui muito do que é a nossa identidade. Os sons dos vizinhos, as conversas na rua, as brincadeiras, os casamentos que se viram a sair das portas ao lado, entre outras histórias”, conta João Ramalho, um dos membros da organização da exposição. O objectivo é dar a oportunidade às pessoas para se “redescobrirem a elas próprias”, através de memórias “já esquecidas ou guardadas”. As memórias de uma rua de cultoFalar da rua direita é sempre uma emoção para António Batalha, 77 anos. Guarda boas memórias da rua que, outrora, era a principal via da cidade. “A miudagem entre os 8 e os 10 anos andava sempre a meter-se connosco. Na altura isto era uma terra extraordinária”, refere António, enquanto confessa estar “triste” com o rumo que a rua está a levar. “As coisas evoluíram para muito mal. Fico triste por ver que Vila Franca é hoje uma terra que tem pouca vida. A qualquer hora da noite, se viesse à rua, via sempre gente. Agora é raro. Éramos uma cidade mais segura antigamente”, garante. Ao seu lado está sentado José Lucas Ramalho, 81 anos. Diz que guarda boas memórias da rua onde trabalhou durante largos anos na loja nº 109. “Quando cortaram o trânsito o negócio murchou muito. Antigamente vendia-se bem, porque havia mais trânsito e porque as coisas eram boas e duravam muito tempo”, explica.“Uma rua que faz lembrar os clássicos de Chaplin”Agarrado aos sapatos que repara com afinco, José Faria, 37 anos, é um dos comerciantes mais novos na rua. Vivia na ilha da Madeira. Desempregado há ano e meio, decidiu tomar as rédeas do seu destino e partiu rumo à aventura. Depois de vários começos em falso fora do concelho de Vila Franca de Xira acabou por apaixonar-se pela rua direita. Já lá vão seis meses. “Gostei das pessoas, são humildes e simpáticas, até agora tenho me dado muito bem. E acho que é uma terra que tem um passado muito doce e nobre”, refere José Faria a O MIRANTE. “Para mim esta rua faz-me lembrar os filmes clássicos do Charlie Chaplin. Tem um ar jovem e as pessoas têm muito carisma, sobretudo as que estão acima dos 50 e 60 anos de idade”, conclui.
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