Honrado Serafim das Neves
Fiquei a saber que o carteiro do Ginguelho, um pequeno lugar na freguesia de Alverca, não entrega as cartas ao pessoal que lá mora porque tem medo de atravessar a linha de caminho-de-ferro do Norte. A situação é recente. Antes deste novo carteiro entrar ao serviço outros houve que avançavam intrepidamente sem receio de comboios rápidos ou lentos; de mercadorias ou de passageiros. Agora acabaram-se as cartas, o cheque da reforma, a edição semanal de O MIRANTE. Pessoas que vivem ali há cinquenta anos são votadas ao abandono. Os chefes do carteiro reconhecem que a travessia é perigosa. Dão razão ao carteiro novo. Eu não. Eu sou um eterno sonhador. Li muitos livros de aventuras quando era novo. Vi filmes antigos. Cavaleiros do “Pony Express” à desfilada, perseguidos por índios ou assaltantes, transportando os sacos das cartas nas garupas das montadas, entre saraivadas de balas e de setas. Em Portugal o carteiro da minha rua, o senhor Barbosa, não era perseguido por índios mas por cães. Era uma matilha inteira que lhe ladrava aos calcanhares e lhe arreganhava os caninos. E ele empoleirado na bicla a dizer fosca-se, fosca-se e aos pontapés nos rafeiros. Como eu o admirava. Trazia-me cartas das minhas correspondentes estrangeiras. Uma francesa, uma austríaca, uma alemã e uma inglesa. Trazia o almanaque de Santa Teresinha para a dona Celeste. Carvalho…fosca-se…fosca-se… carvalho. A dona Celeste rezava. O senhor Franquelim com um tubo de mangueira arreava nos lombos dos canídeos. Quando acertava em cheio num ele gania. Era uma azáfama naquela rua. A menina Rosete vinha em sobressalto à janela saber se o noivo lhe tinha escrito. Vinha com um casaquinho de malha pelos ombros, fosse de Inverno ou de Verão. A voz do carteiro sobrepunha-se ao ladrar das feras. “Hoje tem sorte, menina. Hoje…fosca-se., fosca-se…desculpe…hoje tem sorte”. Depois o senhor Barbosa partia com as duas molas da roupa a segurarem as pernas das calças para não ficarem trilhadas na corrente da velha pasteleira e tudo voltava a ficar sossegado. Imagino que no Guingelho se passava o mesmo. Era no tempo em que os Correios eram uma empresa respeitada. Os carteiros eram homens de barba rija e sentido de responsabilidade. Não ficava uma carta por distribuir, fizesse chuva, vento ou neve. Não havia correio azul, nem verde, nem cor-de-rosa. Uma carta era uma carta. Bastava um nome para ela chegar ao destino. Não era preciso pôr a rua ou o número da porta. No Ginguelho não havia comboio que travasse o carteiro. Imagino-o a assobiar, peito feito a todos os perigos, uma flor silvestre atrás da orelha para catrapiscar alguma moça jeitosa. Se as notícias eram boas, decerto que não saía dali sem beber um copinho e comer uma bucha de pão com toucinho. Se ele soubesse que o seu colega de hoje não vai além da borda da linha, que nem sequer é capaz de andar mais quinhentos metros para atravessar num lugar seguro...Desculpa Serafim, entusiasmei-me. Por vezes tenho saudades do tempo em que as coisas eram feitas por quem as sabia fazer. Do tempo em que o importante não era ganhar dinheiro mas fazer bem feito. Do tempo em que éramos menos doutores e mais homens. Um abraço destemidoManuel Serra d’Aire
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