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“O meu objectivo é fazer com que as pessoas que estão à minha volta se sintam felizes”

“O meu objectivo é fazer com que as pessoas que estão à minha volta se sintam felizes”

O Entroncamento de Dominique Ventura e a complexa mecânica da música

Tem 36 anos de idade e tem uma alegria contagiante. Dominique Ventura. Nasceu em França, arredores de Paris e cresceu no Entroncamento. Diz que teve uma infância fabulosa e uma adolescência repleta de todas as coisas que a adolescência deve ter. Neto da Lucinda leiteira, sobrinho da Chica Fadista, deu-lhe para a música. E deu-lhe forte. Agora vai a todas. Música Popular com os Cepa Torta de Riachos, Músico na Banda do Padre Borga, compositor de fados de Coimbra e de Lisboa, coralista, músico de festas e bares. Já compôs uma marcha, uma opereta e tantas canções que já lhes perdeu a conta. Também já cantou numa ópera. Diz que a música está mais na alma que nas pautas. Continua a estudá-la para melhor a servir.

Como entrou a música na sua vida?Acho que estava dentro de mim. É uma questão genética, certamente. A minha mãe cresceu no rancho de Riachos. Era a mais nova de sete irmãs. Uma das minhas tias, a Francisca Gaspar, é conhecida como a Chica Fadista. Decididamente foi isso que marcou. Não se lembra exactamente quando se deu o “click”?Faz um pausa, retira uma guitarra de um cavalete e começa a tocar e ataca “Queda do Império” de Vitorino. “Perguntei ao vento/Onde foi encontrar/Mago sopro encanto/Nau da Vela em cruz…Interrompe.Isto é lindo! É maravilhoso! Esta é uma das músicas da minha vida. A outra música é do Mike Oldfield – Moonlight Shadow (Álbum Crises 1983, música cantada pela escocesa Maggie Reilly). Eu ouvia isto quando estava de férias em Peniche. Essa música passava duzentas vezes por dia na rádio. São duas músicas que me marcaram melodicamente. Assim como alguns fados que a minha tia cantava.A música emociona-me. Por vezes faz-me chorar. Chorar de felicidade. Nós podemos estudar, podemos saber todas as técnicas de composição, podemos saber a teoria toda. Se a música não nos tocar. Se não estiver à flor da pele, não vale nada.Continua a estudar música, porquê?Estou agora a tirar o Curso Superior de Música em Castelo Branco. Estive alguns anos parado a nível do estudo da teoria mas estive sempre no activo como músico. Estudo porque preciso de aprender mais a nível pessoal e estudo porque são necessárias mais habilitações para aquilo que estou a fazer que é dar aulas de música. Estou a tirar o Curso Superior de Música, variante de Formação Musical mas não é para parar. Quero fazer o curso de canto e o curso de composição.O que estudou antes?Pouco ou nada. (risos) Estive em Coimbra mas não se pode dizer que andei a estudar Filosofia. Andei no Curso de Filosofia. Era trabalhador estudante mas o estatuto de trabalhador estudante quando não trabalhamos na Função Pública, não existe.A culpa era do estatuto, do trabalho, ou do estudante?Do estudante, definitivamente. No Liceu tinha sido uma desgraça. Não estudava nada. Borrifava-me para aquilo tudo. Deixei o liceu no 10ºano.Foi trabalhar? Fui trabalhar com o meu pai na oficina. Fui mecânico durante dezasseis anos. O meu pai é mecânico. Eu sempre adorei carros. Cresci no meio de carros. Estive 11 anos na oficina do meu pai. Depois fui para Coimbra e trabalhei lá na Volkswagen e na Audi. Carros e música.E copos. Andei muitos anos a cantar pelas ruas pelos cafés. Eu e o meu amigo Tomé. Íamos às tantas da manhã para a estação do Entroncamento com as guitarras. Tocávamos, cantávamos e bebíamos como uns cavalos. Nessa altura já trabalhava. Já ganhava para poder gastar em cerveja. Dinheiro para isso nunca pediria aos meus pais.Na sua adolescência ainda se aprendia a tocar guitarra na rua com os amigos? Claro que sim. Um amigo meu tinha uma guitarra só com uma corda. Eu pedi-lha e comecei logo a tentar tocar uma melodia do Eric Clapton – “Lady in red”. Uns vizinhos meus deram-me cordas novas e afinaram-me a guitarra. Começaram a ensinar-me a fazer alguns acordes e do Eric Clapton passei para o Zeca Afonso. Não me recordo porquê mas as primeiras músicas que aprendi a tocar eram do Zeca Afonso. Estávamos em finais dos anos oitenta o Zeca Afonso ainda não tinha sido banido da rádio pela segunda vez. A primeira tinha sido antes do 25 de Abril. Na altura tocava de ouvido.Ainda só sabia meia dúzia de acordes e compus logo a minha primeira música. Por causa de uma miúda que tinha uns olhos azuis lindos. Não me lembro da canção do poema mas ainda me lembro da sequência dos acordes. Sempre gostei de compor. Bem bebido e a tocar de ouvido, poderia ser o resumo da situação. Quando chegam as partituras?Um dia estava na oficina à volta da cabeça do motor de uma carrinha e o professor Henrique Leal que eu só conhecia de vista porque nunca tinha sido meu professor, ouviu-me cantar. Eu andava sempre a cantar enquanto trabalhava. Ele disse-me. Tu davas um bom tenor. E eu: “Yah, sim!! Mas isso é o quê?”. Lá me explicou que era a voz mais aguda dos homens e disse-me que existia o Coro do Orfeão no Entroncamento e que os ensaios eram às terças e quintas. Convidou-me para aparecer lá que eu ia gostar. Está-se mesmo a ver que não pôs lá os pés. Fui mas não foi logo. Um dia à noite passei por lá e fui espreitar. Não gostei nada. Disse que ia à casa de banho, desci as escadas para o café, bebi uma imperial e fui ter com os meus amigos. Mas…Pois, há o tal mas…durante aquele bocadinho que lá estive havia uma melodia que os contraltos estavam a cantar que nunca mais me saiu da cabeça. Era uma célulazinha melódica de um madrigal do Thomas Morley do século XVI. Aquilo andou a matraquilhar-me a cabeça durante semanas e semanas. E fui novamente lá. Falei com o maestro Luís Antunes. Fiz o teste à voz - era mesmo tenor - e lá fiquei no coro. E foi aí que aprendeu música.O Luís Antunes viu que eu tinha jeito para a música disse-me que podia assistir às aulas de formação musical que eram aos sábados de manhã. Foi aí que comecei a aprender teoria. Comecei a estudar flauta transversal com o Luís Antunes e também estudei piano com a Carla Vitória. Passados alguns anos fui estudar piano com a professora Saraswati do Coral Sinfónico de Portugal e fui estudar flauta com o professor Soares em Tomar. E agora continuo a estudar.O meu timoneiroEstá muito disperso em termos musicais. Fez uma marcha para as crianças do ATL do Trendirivir, uma opereta para um grupo de teatro, canções infantis, fados, música popular para o Grupo Cepa Torta de Riachos… A “Maria Vaidosa” é uma música minha. A letra é do João José Nogueira, de Torres Novas. Foi feita aqui em minha casa nesta sala onde estamos a conversar. Eu andava a fazer um trabalho que me deu cabo da cabeça. Mas depois fizeram-me uma proposta muito boa e de um dia para o outro a minha vida mudou completamente e eu andava super-feliz. Nessa noite dormi pouco porque estava eufórico, acordei eram cinco da manhã e eram cinco e meia estava precisamente aqui a compor essa música. Fui remexer papéis, encontrei essa letra e fiz a canção.Essa é uma música de cariz popular. Depois há os fados para Teresa Tapadas, por exemplo…Tenho necessidade de não estar cingido a um estilo musical. Continuo ligado ao fado de Coimbra, ao projecto do Dionísio, que é rock. Já cantei numa ópera, canto com o Padre Borga, canto as minhas canções.“Tu és o meu timoneiro” do padre Borga é da sua autoria. É católico praticante?Essa canção não foi escrita para o Padre Borga. Quando comecei a actuar ao vivo com ele, era eu que a cantava. Depois ele começou a cantá-la comigo. Já era católico ou foi o Padre Borga que o aproximou de Cristo?Não foi o Padre Borga, foi no coro. Cantávamos algumas coisas em latim e eu quis saber o significado daqueles textos. Fiquei encantado. Estava afastado da igreja desde a primeira comunhão mas achei aquilo tão empolgante que, quando dei por mim, foi como no episódio dos pescadores da Galileia, Cristo pescou-me completamente. As músicas de temática religiosa entraram aí na minha vida. Também fazem hoje parte da minha vida. Como é o seu lado religioso? Não sou beato mas acho que a mensagem de Cristo é um dos melhores tesouros da humanidade. Não é fácil amar os outros e fazer os outros felizes mas esse é o meu objectivo. Fazer os outros felizes. E isso não é algo que venha apenas de mim.O neto da Lucinda leiteira que tem um pai que não bebe leite Dominique é nome português?É francês. Eu nasci em França, a dez quilómetros de Paris. Vim de França em 1980, tinha 6 anos. A minha mãe é de Riachos. Nasceu em Riachos e cresceu no rancho “Os Camponeses”. Faz parte dessa geração. O meu pai é de Cacia, próximo de Aveiro. Mas veio para o Entroncamento ainda menino. A minha avó paterna era a Lucinda leiteira, uma das leiteiras mais queridas do Entroncamento. O meu pai conta-me que cresceu dentro de um desses carrinhos do leite. Hoje não bebe leite. Deve ter enjoado.E se emigrou é porque também estava enjoado de Portugal. Foi para França para fugir à tropa. Para não ir à guerra. Foi a salto. Foi ele primeiro e a minha mãe foi lá ter depois com a minha irmã que ainda era bebé. Encontram-se na fronteira. Aquelas histórias que só se vêm nos filmes. O meu pai chama-se António Ventura e a minha mãe é Maria José.E depois dessas aventuras nasce o bebé Dominique.Nasci em 1973. Em Outubro. Ainda sou do signo balança. Mas isso dos signos toda a gente lê mas poucos acreditam. Se o médico tivesse esperado um pouco mais eu tinha nascido no mesmo dia mas a uma hora diferente. Tinha outro ascendente. A vida tinha-me corrido melhor, provavelmente. Se calhar a culpa não é dos signos, é dos médicos.É mais português que francês. A minha terra é, efectivamente, o Entroncamento. É bilingue?Quando vim para Portugal não sabia uma única palavra em Português. Lá os meus pais só falavam francês e não me ensinaram as duas línguas simultaneamente. Quando vim é que aprendi. Cheguei em Agosto e fui logo para uma senhora ali na rua Elias Garcia, para ter aulas de português antes de começar a escola. Em França tinha feito a 1ª classe. Cá voltei a fazê-la. Era um excelente aluno. Se em crescido fosse tão bom aluno como era em criança…Como foi crescer no Entroncamento?Foi uma vida fabulosa. Foi inesquecível. Não tinha saudades de França?Os adultos é que têm saudades. Sei que senti falta de um grande amigo que tinha em França que era o Arnaud. Depois de eu estar cá ele veio passar férias aqui um ano ou dois. Há muito tempo que não tenho notícias dele. Mas cá tive uma infância fabulosa e uma adolescência inesquecível. A brincar na rua. A andar de bicicleta. A fazer aquilo que hoje em dia não se faz que é jogar à carica. Jogar ao prego. Jogar às fisgas. Andar à briga.Ia muitas vezes a Riachos, terra da sua mãe?A Riachos não. Eu morava ali em cima onde é o Silva dos Azulejos, na rua Elias Garcia. Juntávamo-nos com o pessoal da Sobreira. A rua era a nossa casa, fosse de Inverno ou de Verão. Nós vivíamos na rua. O facto de ser gago complicou-lhe a vida?Quando somos mais novos é pior. Mas não foi nada traumático. Gozavam comigo assim como eu gozava com outros por qualquer outro motivo. Por serem gordos, ou por terem o cabelo cor de cenoura. Eu é que me auto-limitei. A culpa não era dos outros. Sentia-me inseguro. Na adolescência era um tormento por causa das miúdas. Ao telefone então era um desastre. Se fosse eu a atender safava-me. Se fosse eu a ligar era o cabo dos trabalhos. Andei algum tempo numa terapeuta da fala. Conseguimos descobrir qual era o problema. Se eu controlar a respiração praticamente não gaguejo. “O sucesso é quando acabo de cantar e há pessoas que me agradecem”Nunca foi a nenhum concurso de talentos da televisão. É assunto que não lhe interessa? Interessa, claro que interessa. E já concorri. Eu e outros milhares de jovens como eu, mas não consegui ser seleccionado. O Ricardo e o Filipe Santos aqui do Entroncamento, conseguiram.Esses concursos servem para alguma coisa?Não são tudo mas aprende-se e ganha-se visibilidade. Depois tudo depende da qualidade de cada um. Não há milagres. Também busca o sucesso?Sim claro. Procuro o sucesso. Não procuro o estrelato. E tenho algum sucesso. Não sou uma estrela, não estou nos tops nacionais, mas há pessoas que depois de me ouvirem vêm ter comigo para me dar os parabéns. São pessoas que não conheço. Pessoas que podiam, muito simplesmente, ouvir e ir embora. Mas fazem questão de me agradecer. Isso para mim é o sucesso.O Entroncamento inspira algum compositor? Já compôs alguma canção inspirado pelo Entroncamento? Das músicas que eu compus há poucas que têm a ver com lugares e nenhum desses lugares é o Entroncamento. S. Martinho do Porto ou Coimbra inspiram… O Entroncamento inspirará pouco ou nada. Algumas pessoas daqui, sim. Pessoas que se cruzaram comigo. O que me fizeram sentir. Que influência tiveram sobre mim. Mas o Entroncamento, não tendo uma raiz musical material, tem excelentes músicos.
“O meu objectivo é fazer com que as pessoas que estão à minha volta se sintam felizes”

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