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“Um bom treinador não tem que se mostrar”

“Um bom treinador não tem que se mostrar”

Nelson Gomes é um dos melhores técnicos de triatlo do país
O trabalho de Nelson Gomes não passou despercebido à Federação Portuguesa de Triatlo que o elegeu por duas vezes treinador do ano. João José Pereira é o seu campeão mais conhecido, entre muitos outros que ajudou a descobrir. É considerado um dos melhores treinadores da modalidade mas em finais de 2008 dedicou-se ao ensino. Mas o regresso ao triatlo está para breve.Como surgiu a ideia de se criar a secção de triatlo no Alhandra Sporting Club (ASC)?Tínhamos um grupo de natação formado há algum tempo e que era muito competitivo. Infelizmente no concelho não haviam as condições ao nível das piscinas para que tivéssemos natação federada. Quando em 2006 surgiu a ideia de se criar a secção de triatlo as condições foram aparecendo e a modalidade foi evoluindo. Iniciámos o treino nas três modalidades e os resultados começaram a aparecer.Qual é o segredo para o ASC ser um autêntico viveiro de campeões?É o espírito de grupo e aquilo que existe à volta dele. Tem a ver com a motivação. Os miúdos quando entram para a natação ou para o triatlo sabem que os campeões estão aqui. Existe um grupo que é muito forte e exigente. Quando os mais novos chegam, tentam seguir o exemplo dos mais velhos e só pensam em dar o melhor. Se isso representa títulos, óptimo. Se não representar, tudo bem na mesma. Isso é o que faz a grande diferença. Se trabalharmos só para sermos campeões muitos acabam por desistir. Por que é que abandonou o clube no final do ano passado? Por questões pessoais. Além de treinador sou professor de educação física e foi um esforço muito grande durante esses anos conciliar as duas coisas. Na altura era o único treinador que estava ligado ao grupo que fazia treinos bi-diários. Um às seis da manhã e outro ao final da tarde. Em média dormia cinco horas por noite. No ano passado ponderei bem a situação. Como tive a necessidade de passar mais tempo na escola de Benavente e era o único treinador na altura dos juvenis, juniores e seniores, não deu para continuar a fazer as duas coisas. Se houvesse mais um ou dois treinadores talvez me mantivesse como treinador principal. Naquelas circunstâncias não iria conseguir acompanhar o grupo como deve ser nem podia abdicar do meu trabalho como professor.Não ficou triste por deixar um projecto que tão bons frutos têm dado?Sentimo-nos sempre tristes. Mas penso que em termos de resultados o meu objectivo foi conseguido. Os nossos atletas começaram a ser chamados às selecções, fomos a melhor equipa a nível nacional, ganhámos a Taça de Portugal e conquistámos outros títulos de campeões nos mais variados escalões individual e colectivamente. A nível internacional temos o João José Pereira que é neste momento um dos melhores. Foram anos em cheio para o triatlo do ASC. Muito acima das expectativas. Sente que o sucesso deles também é um pouco seu?Sim, sinto. Mas não faço questão de dar nas vistas. Um bom treinador não tem que se mostrar. Quem tem de reconhecer o trabalho do treinador é o atleta. Eles é que são as estrelas e prefiro que sejam eles a brilhar.Considera-se dos melhores treinadores do país?Seria falsa modéstia se dissesse que não. Os resultados que obtive falam por mim. Em termos de planeamento estou ao nível dos outros. Depois o que fez a diferença foi o trabalho que fiz em termos psicológicos com os miúdos. E as condições que me foram oferecidas pelo ASC também ajudaram.Espera voltar um dia a ser técnico de triatlo?Sim. Mais cedo do que se possa pensar. Afastei-me mas mantenho o contacto regular com a modalidade e estou sempre informado.Que quer dizer com isso?Estou a ponderar a forma de voltar ao triatlo pelo ASC. Um projecto ligado ao clube mas que ainda não posso revelar.Tem o objectivo de chegar à selecção nacional?Não. É algo que não está nos meus horizontes.Qual é o papel do treinador numa prova de triatlo?O planeamento é feito em função das características do atleta. Se é mais rápido ou se tem mais resistência. Se é melhor na corrida ou no ciclismo. Todas essas variáveis são tidas em conta e importantes. O essencial em termos tácticos é que o atleta saia no grupo da frente no segmento da natação, porque quem perde na natação dificilmente consegue chegar à frente no ciclismo. Na corrida, como se costuma dizer, é “à morte”. Quando as distâncias são maiores ou nas provas por equipas há algum trabalho táctico que se pode fazer. Mas é muito pouco. O ASC é dos melhores clubes nacionais ao nível da formação no triatlo?Sem dúvida. Existe o Triatlo Clube de Almada e o Sporting que está a começar do nada. Foi buscar alguns atletas com valor. É bom que haja cada vez mais clubes que apostem na formação para fazer evoluir a modalidade e os próprios clubes.Acha que será difícil para o clube segurar atletas como o João José Pereira?É complicado mas o clube está a trabalhar para que isso não aconteça. O projecto inicial tem uma base sustentável. A ideia é tentar segurar aqueles que vão ficando mais velhos. Há alguns atletas que são seduzidos por valores que não se justifica a mudança de clube. Sei que o ASC está a trabalhar para que possa segurar os seus melhores triatletas. Nomeadamente o Jorge Leitão que é o responsável pela secção. Falou há pouco nas condições que o ASC tem. São boas?Oferece boas condições mas não as ideais. Falta uma sala de musculação. É uma cosia secundária mas à media que se vai querendo ir mais além há que ter melhores condições. E sei que se está a trabalhar nisso. Mas a questão aqui não passa tanto pelo Alhandra. O que nos impede de fazer um trabalho melhor passa muito pelos horários escolares. Estes miúdos deviam ter aulas da parte da manhã e saírem todos os dias às 4 da tarde para poderem fazer o segundo treino às 5 horas até as 7 e meia. Ficando depois com o tempo livre para estudarem, estarem com os pais e para as suas coisas. Isto era o ideal. Há um grande esforço por parte de todos para conciliarem o treino em função do horário de cada um. O clube tem agora um novo treinador…Fui eu que sugeri o Nuno Calvário. Comecei a contactar com ele, quando ainda estava a treinar o Cartaxo, um ano antes de vir para o ASC. Conversámos muito e quis saber como via o treino e como se relacionava com os atletas. Foi o único que achei com capacidades para dar continuidade ao trabalho que vinha sendo desenvolvido. E confirmou-se, este ano, com os resultados que se mantiveram ao mesmo nível. Está a fazer um bom trabalho e neste momento é a pessoa certa para o lugar certo. É um dos melhores treinadores nacionais. E trouxe o Fabrício Tomás que é uma das esperanças da modalidade…Quando são muito novos é um pau de dois bicos. É fácil trabalhar com pessoas novas e conseguir bons resultados, desde que estejam motivados. Em termos de treino já está tudo inventado. Não fazemos nada de novo. O problema é trabalhar a cabeça deles, a parte psicológica. A motivação, os pais, o que rodeia o clube. O Fabrício já teve bons resultados mas ainda é muito novo. Vamos ver para onde é que caminha. A única certeza neste momento é o João José Pereira.“João José Pereira foi uma aposta pessoal e pode ser um dos melhores de sempre”Foi o primeiro treinador do João José Pereira. Quando chegou ao ASC quase não sabia nadar…Sabia manter-se em cima da água (sorrisos). Chegou ao ASC através de um colega meu de educação física. Perguntei-lhe se sabia nadar e ele disse que sim. Quando entrou na água não foi ao fundo mas nadava com a cabeça de fora e não tinha postura. Fazia 25 metros e não conseguia mais. Mas fez um teste de corrida que foi o melhor de entre todos. À frente de atletas que estavam connosco há dois anos. Tinha potencial na corrida. No ciclismo conseguia acompanhar os colegas. Só na natação é que era mais complicado.Foi uma aposta pessoal?Sim, sem dúvida. Fui eu que decidi se ele continuava ou não. Treinou connosco 15 dias e durante esse período evoluiu imenso. Foi aí que reparei que podia fazer um trabalho com ele. Comecei a dar-lhe os treinos de natação à parte, mesmo estando com o grupo todo. Em meses estava ao nível dos colegas. Evoluiu muito mais do que um jovem para a idade dele. Uma coisa fora do normal. Augura um grande futuro para o João José Pereira?Apesar de já não estar com ele mantemos um contacto regular. Tem um potencial enorme. Na minha opinião pode vir a ser um dos melhores triatletas nacionais de sempre. Vai depender dele, do que está à sua volta e de quem o rodeia. Um atleta não pode ser visto só como uma máquina de nadar, pedalar e correr. Se trabalhar bem a parte psicológica, manter-se estável, seguro no que está a fazer e se não colocar muitas questões sobre o seu futuro, tem todas as condições para obter resultados excelentes.Neste momento é o melhor?A nível nacional é dos que se destaca mais e neste momento já é uma certeza a nível internacional. Mesmo durante o Campeonato do Mundo de Sub 23, mais que uma vez falaram do João e assim que acabou o ciclismo todos sabiam que ele era um atleta que podia vencer. Ficou em terceiro mas foi um resultado fantástico.E disse que podia ter chegado ao segundo lugar…Essa é a forma de funcionar do João e é muito bom quando se pensa assim. Quando se fica em terceiro e pensa-se que podia ter chegado ao segundo, quer dizer que não está satisfeito com o que tem e que se quer mais. É o pensamento dos campeões.“Não acredito naquilo que se faz como professor de educação física”Perdeu-se um bom treinador de triatlo e ganhou-se um bom professor?Sempre fui bom professor. A escola é um meio complicado para que um professor de educação física se sinta totalmente realizado. Existem mínimos para que os alunos evoluam nessa disciplina. O ideal seria conseguirmos estar com as turmas pelo menos três vezes por semana de forma a sentirmos que os miúdos estão a evoluir. E isso não acontece.Acha que o sistema está errado?Sim. Pensar que lhes vou ensinar, andebol, atletismo, tanta modalidade no mesmo ano, é uma coisa sem sentido. Não acredito muito naquilo que se faz como professor de educação física.O que poderia ser feito?Gosto muito que a minha disciplina seja eclética. Mas só até determinada idade. A partir dos 12, 13 anos, deviam ser os alunos a escolher uma modalidade que quisessem desenvolver e que a escola desse condições para que isso fosse possível.Mas aí teriam que formar professores vocacionados para cada modalidade…Seria um conceito de educação física muito diferente. A exigência que é neste momento pedida aos alunos é muito grande face àquilo que podemos transmitir. Fazendo as contas, por ano, o tempo útil em cada modalidade, não ultrapassa as duas semanas. Quem consegue evoluir seja em que modalidade for, só com duas semanas? Como professor, que analise é que faz do panorama educativo?Não acredito no sistema de ensino como está agora e não conheço nenhum professor que acredite. Não só por causa do que se falou acerca da avaliação dos professores mas também tem a ver com o próprio ensino, a estrutura curricular e a própria escola.Como assim?Neste momento um professor está sujeito a mutas coisas. Pensa em muita coisa excepto naquilo que o devia preocupar, que são os alunos e o planeamento das aulas. Temos tanta coisa para fazer, preencher papéis, andar a justificar tudo e mais alguma coisa, reuniões por tudo e por nada que depois o essencial acaba por ser prejudicado. Houve uma mudança radical no ensino nos últimos anos. Há uma perda de autoridade do professor. Isso sente-se cada vez mais e é muito difícil de recuperar.Acha que os alunos saem mal preparados para o mercado do trabalho?Um dos factores é a forma como é visto o professor. No meu tempo de escola não me passava pela cabaça colocar em causa a sua autoridade. Se falassem com os meus pais, eles estariam do lado do professor. Hoje acontece exactamente o contrário. Os pais estão sempre do lado dos filhos. Os pais não têm respeito pelo professor e isso faz com que os filhos também não tenham. Torna-se complicado dar aulas mas a disciplina de educação física ainda é um local privilegiado.Nas outras disciplinas é mais complicado?Os alunos não têm vontade nenhuma de estar numa sala de aulas de matemática ou de português. Não vêem qual é o objectivo. Pensam que sabem tudo.Que razões encontra para esse facto?É um problema da própria sociedade. Os pais trabalham muito e já não há aquela ligação com os filhos que passam o dia todo fora de casa. Quanto mais tempo estiveram na escola, melhor para os pais, pois assim estão mais à vontade para trabalhar até mais tarde. Acha que os pais estão à espera que a escola faça o seu trabalho?Sem dúvida. Já tive pais que chegaram ao pé de mim e me disseram. `Você é que tem que educar o meu filho porque eu não tenho tempo´. É uma linguagem recorrente. Neste momento há uma grande perda da ideia do que é ser pai e mãe. Serem pais não é só por o dinheiro em casa, a comida na mesa, pagar os estudos e dar os brinquedos. Há limites que têm de ser os pais a colocar e não os professores. Se os pais não conseguem os professores também não. E para reprovar um aluno hoje em dia é um problema.Acha que a pressão dos números a isso obriga?Tínhamos uma das mais taxas de analfabetismo. Custa-nos ver a campanha que é feita para enganar os valores reais.Eleito duas vezes como treinador do ano pela federaçãoNelson Gomes tem 36 anos e em 2006 foi um dos principais responsáveis pela fundação da secção de triatlo do Alhandra Sporting Club (ASC), depois de ter tirado o curso de treinador, juntamente com dois colegas.Até finais de 2008, desenvolveu um trabalho na modalidade que levou o clube ribatejano aos lugares cimeiros no triatlo, conquistando vários títulos nacionais, nos mais diversos escalões, masculino e feminino, individual e colectivamente. O sucesso alcançado, em particular o trabalho feito com João José Pereira, não passou despercebido à Federação Portuguesa de Triatlo que o elegeu por duas vezes como melhor treinador do ano na modalidade. Licenciado em educação física, depois de ter deixado o cargo de técnico principal do ASC dedicou-se mais ao ensino e durante o último ano leccionou em Benavente. Este ano lectivo é professor na escola secundário Gago Coutinho, em Alverca do Ribatejo, local onde estudou, apesar de ter nascido em Vila Franca de Xira. Actualmente reside no Sobralinho.
“Um bom treinador não tem que se mostrar”

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