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Fernando Howell o dono da drogaria que tem uma costela de enólogo

Fernando Howell o dono da drogaria que tem uma costela de enólogo

Já lá vão os tempos em que analisava vinhos do Cartaxo pela noite dentro

Por detrás do balcão da Drogaria Guedes, na Rua Batalhoz, no Cartaxo, funcionou durante décadas um laboratório onde Fernando Howell Guedes, hoje com 78 anos, ocupava as noites a analisar vinhos dos produtores da terra.

Nos tempos em que na então vila do Cartaxo se produziam milhares de pipas de vinha, entre as várias casas agrícolas da zona, Fernando Howell Guedes, comerciante de uma casa com o nome da família, na rua Batalhoz, fechava a porta do estabelecimento ao final da tarde para se dedicar ao trabalho das análises de vinho madrugada fora.Ao fundo da drogaria, soalho de madeira e armários altos, num sítio esconso, ainda permanece o laboratório, herdado do pai, onde o senhor Guedes, como gosta de ser tratado, 78 anos, regressa em dias muitos especiais para fazer uma ou outra análise ao vinho.Era nos boletins em papel, impressos na tipografia, que discriminava manuscritamente as características dos vinhos. Referenciava o teor alcoólico do vinho e o grau de acidez, entre outros parâmetros, calculados com recurso a instrumentos como o acidímetro, usado na medição da acidez total. Os produtores entregavam amostras de vinho no laboratório para que fossem apuradas as características. “Havia alguns problemas com os vinhos amuados e tínhamos que tratar deles”, explica.Concluiu o liceu no Cartaxo, mas nunca chegou a ingressar no ensino superior. Tudo o que aprendeu foi com o pai, que frequentou o terceiro ano do curso de medicina, mas não chegou a acabar os estudos. “Já li mais livros de enologia que aqueles que se lêem nos cursos e acontece que tenho uma prática grande”, defende-se Howell Guedes, que assume ter “costela de enólogo” e se orgulha de ter ajudado uma casa do concelho a ganhar um prémio nacional em tempos áureos. “O rapaz era funcionário do Grémio da Lavoura. Chamávamos-lhe o sacristão. Morava no largo da Igreja. Tinha uma vinha em Vila Chã de Ourique e a partir daí é que fizemos o célebre vinho tinto que ganhou o concurso”.Conta que chegava a fazer duas mil análises de vinho por ano. Actualmente diz que faz cerca de uma centena. “Trabalhava durante a noite porque tinha casas agrícolas que me pediam análises ao vinho. É muito trabalhoso. De maneira que tinha as minhas noitadas até às duas da manhã”.Os produtores compravam na loja os produtos enológicos - entretanto substituídos por perfumes, brinquedos e bijuteria - para tratamento e correcção de mostos e quando era necessário Howell Guedes fazia correcções.Em 1959, quando o pai faleceu, tomou conta da loja e do laboratório. Howell Guedes conta que um enólogo amigo, Octávio Pato, que costumava visitar a casa, se queixava da exigência do laboratório. “Aprendi a fazer vinho com o meu pai. Não era adegueiro. Tive a minha prática. Passou-me muito vinho pela mão”.Tem esperança de que o filho, engenheiro químico, siga os seus passos. Howell Guedes admite que trabalhar no mundo do vinho é complexo e exige um condão especial. “Respeito os enólogos deste país, mas em determinadas alturas acho que não estou a beber vinho estou a beber outra coisa qualquer”, critica, referindo-se aos novos aromas de que não é apreciador.Humor inglês ao balcão“Estou a meio de uma entrevista. Faça o favor de não me interromper”, avisa Fernando Howell Guedes, com ar profundamente sério, dirigindo-se a uma cliente da Perfumaria Guedes. O humor verdadeiramente “inglês” do comerciante do Cartaxo, 78 anos, oriundo de famílias do país de sua majestade, já é conhecido na cidade e perdoado pela freguesa que acaba por despedir-se com um beijo e sair com um sorriso. O homem de telefonia presa nas calças verde-camuflado, que entra a ranger o soalho, ainda permanece à espera de ser atendido, mas Howell Guedes passa a bola à mulher, companheira de quase meio século de vida.“Maria Helena, em que ano casámos?”. A companheira sorri e não tem a certeza. Howell Guedes acha que foi em 1953. Aos 16 anos perdeu a mãe. Aos 29 ficou sem pai. “Tive a sorte de conhecer a minha mulher que me salvou”, diz referindo-se à mãe dos seus dois filhos - uma professora e um engenheiro químico. “A minha mulher é que me veio buscar ao Cartaxo. Vinha a casa de uma pessoa de família e depois catrapisquei-a. Mas tive algumas vinte!”, continua, não fosse descendente de ingleses. “A minha mulher é bisneta do Visconde de Seabra – foi o homem que fez o código civil -, mas vem aqui atender os clientes ao balcão”. A mulher interrompe para dizer que prefere estar na loja, onde sempre convive, do que sozinha em casa.Na loja de família vendem óleo milagroso para as mobílias. É anti caruncho, dá brilho e conserva a madeira. É o último dos produtos que Howell Guedes manipula e embala. “Um tradicionalismo. Vendo isto para o Canadá. São os emigrantes que levam. Querem que coloque isso lá à venda, mas explico-lhes que tenho que fazer”. A fórmula é sua. Do pai herdou a de um formicida que se vendia aos milhares, mas que foi proibido. “Se as meninas o colocassem na ponta da língua iam desta para outra”. Hoje vende na loja, que já conta com 140 anos de vida, frascos de água-de-colónia, perfumes, bijuterias, brinquedos, detergentes e utilidades para o lar. Mas o estabelecimento já foi de drogas, ferragens e artigos de caça. Os armários estreitos, a tocar no tecto, pintados de branco, ainda são desse tempo. Foram feitos pelo avô, que padeceu vítima da pneumónica. Durante muitos anos geriu a fábrica de gelo que fornecia o mercado municipal. Negócio conseguido pelo pai, subdelegado procurador da república na Comarca do Cartaxo. O avó, de Cachoeiras, Vila Franca de Xira, Joaquim Calisto da Silva Guedes, foi dono de uma farmácia, e assinou também invenções. O pai fez questão que Howell Guedes aprendesse piano com um professor particular e falasse francês. “Ia-me tramando porque isso na prática não resultou. Depois dediquei-me de corpo e alma a esta brincadeira e aqui estou”.Nasceu no dia 31 de Agosto de 1931 - o pai dizia a brincar que foi um grande 31 - exactamente por cima da primeira lâmpada que o cliente vê ao entrar, do lado direito. Naquela casa quer morrer. A maior parte dos clientes já partiu. “Aqui estou a aguardar os novos acontecimentos e a urna”, diz a soltar duas gargalhadas.Recordações do tempo do vinho a martelo “Vinho a martelo”. O termo soa mal aos ouvidos de Howell Guedes, um comerciante do Cartaxo, que se dedicou à análise de vinhos da terra. “Impressiona-me falar disso”. A esposa atesta: “Quem aqui chegava com isso era posto na rua”, diz Maria Helena. Howell Guedes discorda com a falsificação dos vinhos, mas habituado que está a esmiuçar as características dos néctares, sabe bem como era preparado o líquido.“A base era o açúcar. Utilizavam vinho, mas acrescentavam aditivos impróprios para aumentar as capacidades de produção. Matérias corantes, como aquelas que se utilizam nos bolos, melaços e outras coisas do género que a lei não permite. Usavam corante bordeaux, que era a cor que mais se gastava nos vinhos”, lamenta.Foram casos isolados, garante Howell Guedes, que nota à distância que o vinho é falsificado e por isso impossível de analisar já que as referências são alteradas. “Havia indivíduos especializados nisso que imitavam com alguma perfeição. Mas a junta nacional de vez em quando fazia estragos e havia selagens de vinhos”.Nada que chegasse à sua casa. “Eu tinha um estabelecimento honesto. Ninguém me enganava. Fui escanção e sei provar um copo de vinho. É um condão que as pessoas têm”.
Fernando Howell o dono da drogaria que tem uma costela de enólogo

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