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A psicóloga clínica que luta contra as barreiras físicas e mentais

A psicóloga clínica que luta contra as barreiras físicas e mentais

A história de Sandra Santos resume-se em poucas palavras: força de vontade

Tinha três meses quando um médico lhe diagnosticou paralisia cerebral. Apesar das barreiras formou-se em psicologia clínica. Contornou degraus e superou escadarias de preconceitos. E não desistiu de votar mesmo quando foi preciso fazê-lo no átrio de uma escola, à frente de quem passava, por falta de uma secção acessível. Sandra Santos tem consultório aberto na Quinta da Flamenga, em Vialonga, e não faz discriminação, sejam jovens, adultos e idosos. Homens ou mulheres.

E se de repente se visse dependente de uma cadeira de rodas para se movimentar? “As pessoas esquecem-se de que isto pode acontecer a qualquer um. Mesmo aos ministros ou ao Presidente da República”. O aviso é da psicóloga clínica Sandra Santos, 32 anos, com gabinete instalado na Quinta da Flamenga, em Vialonga. Depende de uma cadeira de rodas para se movimentar desde criança, mas a sua limitação física nunca foi impedimento para realizar os sonhos. A luta por ultrapassar as barreiras físicas e mentais de uma sociedade “que não está preparada para receber os deficientes” começou cedo. Quando foi preciso encontrar maneira de transpor os degraus das escolas mais perto de casa, procurando uma mais distante, na vizinha Póvoa de Santa Iria, mais ampla e sem barreiras.Foi o primeiro dia de uma viagem que Sandra Santos continua a fazer. Os pais são quem torna esse percurso possível. É a mãe quem empurra a cadeira de rodas de Sandra Santos, a quem aos três meses foi diagnosticada paralisia cerebral. A mãe, olhos azuis e ar de menina, que abre a porta do consultório, é uma heroína na vida da filha, tal como o pai. Enquanto a cadeira eléctrica não chega, a progenitora tem que redobrar a ajuda que para Sandra Santos continua a ser vital. “Há uns anos os deficientes ficavam em casa fechados. Os meus pais sempre me mostraram. Sempre andaram comigo na rua para as pessoas se habituarem”, descreve.Frequentou o centro de reabilitação Rainha D. Amélia de onde saiu aos 11 anos por entenderem que a menina tinha capacidades. Seguiu-se no segundo ciclo a escola do Forte da Casa. E mais obstáculos vieram no encalço. Escadas e pequenos degraus detectados no acto da matrícula. Os pais pediram que se construísse uma rampa para que a filha tivesse acesso à escola. “Quando entrei para lá em Setembro não estava nada feito. Disseram que a escola perdia a estética se construíssem rampas nos pavilhões”, lembra Sandra Santos. A custo a rampa acabou por ser erguida. Só no oitavo ano foi construída uma rampa coberta que dava acesso ao refeitório. “Até aí quando chovia, ou tinha que ir à chuva ou comia no pavilhão”, diz Sandra Santos à distância de muitos anos, sem sinais de revolta.Ingressou no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, no contingente especial para deficientes, mas a batalha não foi menor. Um elevador pequeníssimo e muitas escadas. O pai levava-a todos os dias de manhã. A mãe cumpria a missão de ir buscá-la. Os pais trabalham na pizzaria por conta própria. “Foi por isso que consegui ir à Universidade”, admite. O seu sonho era ser jornalista. Fazer reportagem de rua. Mas as limitações fizeram-na repensar o futuro. A psicologia surgiu naturalmente pela opinião dos amigos de quem era conselheira. “Sempre fui mais velha que os meus colegas e eles vinham pedir-me conselhos amorosos”. Acabou o curso há três anos. Começou por dar consultas em casa. Tem consultório instalado há um ano. A lista de pacientes não é tão extensa como desejaria. A psicologia ainda é mal vista. “E algumas pessoas não admitem que precisam de ajuda”.Saiu da faculdade cheia de ideais e acreditou que seria capaz de mudar o mundo. “As pessoas acham que os deficientes não têm capacidade. Algumas pessoas ainda acham que devemos ficar fechados”, interpreta.Na infância sentiu-se fragilizada, mas um psicólogo ajudou-a a aceitar-se a si própria. Tem 32 anos, sorriso aberto e no olhar a certeza de que todas as barreiras podem ser ultrapassadas com força de vontade. Usa um verniz lilás brilhante. Mas a luz que emana de si é um azul tranquilidade que os acessórios reflectem. No anelar esquerdo uma aliança confirma um namoro com dois meses que faz brilhar os olhos. Ele trabalha há quatro anos na Pizzaria dos pais. Ter filhos faz parte dos planos de Sandra Santos. “Sou uma pessoa muito romântica e o meu sonho é casar na Igreja de véu e grinalda e ter filhos”. A luta por ultrapassar as barreiras físicas e mentais de uma sociedade “que não está preparada para receber os deficientes” começou cedo.O pai do menino que perseguia a mãe de faca na mãoNa altura em que Sandra Santos encarreirou na área da psicologia clínica ouviu, da boca de um menino que acabava de conhecer, a história do pai que perseguia a mãe pela casa de faca na mão. “Ele não me conhecia de lado nenhum e contou-me a história. Fiquei muito mal. Horrorizada mesmo. Outros meninos faziam-me perguntas sobre se eu sentia as pernas e porque não andava”, conta.Foi uma espécie de vacina que Sandra Santos recebeu contra as dores dos outros. “Temos que ouvir, dar conselhos úteis às pessoas e não nos podemos deixar envolver”, diz a psicóloga que não acompanhou o caso, mas garante que teve solução. Sandra Santos foi voluntária na Abeiv e fez estágio curricular na APAC – Associação Popular de Apoio à Criança. “Eles achavam que se eu era psicóloga, eles também conseguiriam ser alguma coisa na vida. Algumas crianças achavam que eram inferiores, mas depois olhavam para mim e diziam: se tu consegues eu também consigo”, ilustra. Dizia-lhes que para cumprir um sonho bastava querer e lutar. “As coisas não caem do céu. A sociedade não está adaptada a nós. Nós é que nos temos que adaptar à sociedade”.O livro de reclamações é usado por “questões menores”Quando segue pelo passeio, nas ruas de Vialonga, é difícil não encontrar um carro estacionado no sítio que deveria ser reservado aos peões. Nas finanças, seja em Alverca ou em Vila Franca de Xira, é impossível entrar com cadeira de rodas. “As pessoas são simpáticas e ajudam a minha mãe a subir”, ilustra a psicóloga Sandra Santos que recorda que na faculdade para superar uma rampa tinha que pedir ajuda a três colegas. Há prédios novos que não têm rampas e os elevadores são mínimos e obrigam a encolher as cadeiras de rodas. “Temos leis que até nos beneficiam muito, mas não passam do papel”. E de quem é a culpa? “Do Governo que faz as leis e não fiscaliza”.Quando votava na escola da Icesa, Sandra Santos era chamada ao primeiro andar. “Eles tinham que vir cá abaixo e eu votava à frente de toda a gente, no átrio”. Da última vez que recorreu ao Centro de Saúde de Vialonga os elevadores estavam avariados e a médica teve que pedir um gabinete emprestado. “O livro de reclamações está tão usado por reclamações menores que já nem ligo”, desabafa.Um consultório perto de um bairro problemáticoO consultório de Sandra Santos fica localizado na Quinta da Flamenga, em Vialonga, numa nova urbanização que não fica muito distante do Bairro da Icesa, uma zona da freguesia com estigmas sociais.A realidade não passa despercebida à psicóloga que considera de extrema importância dar mais atenção às crianças e jovens numa altura em que os pais têm cada vez menos tempo para estar com os filhos. “Costumo dizer que as crianças são amorosas, mas podem tornar-se violentos e ladrões consoante a educação que tiverem”, alerta a psicóloga que lembra que muitos pais já não têm paciência para estar com os filhos depois de um dia pesado de trabalho. “E depois compensam a criança com bens materiais, jogos e computadores”. As perturbações começam geralmente na família, alerta Sandra Santos. “Não quer dizer que seja a família a provocá-los, mas se isso for detectado é possível fazer da criança um adolescente melhor”.Psicóloga, mas não sexólogaUma paciente que Sandra Santos recebeu no consultório decidiu expor à psicóloga os problemas sexuais do marido. “Explicou-me que gostava muito de fazer amor e o marido não. Fiquei um pouco constrangida porque não sou sexóloga. A pessoa não me saia daqui e eu estava à espera de um paciente”, diz à distância com humor. Há pessoas que querem resultados rápidos, refere Sandra Santos mas a psicologia é lenta. “As pessoas estão habituadas a tomar remédios que têm um efeito muito mais rápido”. Os homens são mais subtisSandra Santos dá consultas de psicologia clínica a crianças, adultos e idosos, mas prefere a psicologia infantil. “As crianças quando têm algum problema demonstram. Um adulto consegue camuflar. É complicado fazer com que deite cá para fora as coisas que o atormentam”. Com as crianças trabalha muito com os brinquedos. “Através da brincadeira consegue descobrir-se, por exemplo, se a criança é vítima de abusos sexuais”. Já atendeu pessoas deprimidas, mas nunca ficou deprimida. “Todos nós temos altos e baixos”. As mulheres têm mais facilidade em falar dos seus problemas. Os homens têm mais dificuldade. Têm pudor de abordar problemas sexuais com receio de perderem virilidade. Observa os pacientes e retira informação das entrelinhas. O que não é dito também importa. “Os homens são subtis. Não nos dizem logo directamente. Nós é que temos que ir à procura”.
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