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Memórias do autor dos “homens que nunca foram meninos” no museu

Memórias do autor dos “homens que nunca foram meninos” no museu

Centenário do nascimento de Soeiro Pereira Gomes assinalado em Vila Franca de Xira
O espólio literário de Soeiro Pereira Gomes só acessível a investigadores e estudiosos está agora disponível ao público através da exposição “Soeiro Pereira Gomes – Na Esteira da Liberdade. Inaugurada na tarde de sábado, 7 de Novembro, a exposição está patente no piso um do museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, até Março de 2010.Apesar de só ter assentado arraiais em Alhandra após o seu casamento, o escritor é sempre associado a esta vila do concelho de Vila Franca de Xira. O autor da obra “Esteiros” é considerado um dos grandes escritores neo-realistas portugueses. Por estes motivos, o Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, decidiu assinalar o centésimo aniversário do seu nascimento com uma exposição sobre a vida e obra de Soeiro.A cerimónia contou com a presença de dezenas de admiradores e pessoas que travaram conhecimento com o escritor. Entre eles, estava António Redol – filho de Alves Redol – e afilhado de baptismo de Soeiro Pereira Gomes. A quem este deixou, simbolicamente, após a sua morte, a sua caneta e lapiseira. António Redol doou ao museu estes dois objectos e um estojo composto por colher, garfo e faca em prata que recebeu do seu padrinho no dia do seu baptizado.Soeiro Pereira Gomes é recordado como um homem de causas, um militante dos direitos humanos e do associativismo que entrou na clandestinidade por lutar pela liberdade que não existia. Da janela de sua casa observava as crianças nadarem nos esteiros e nas charcas - afloramentos naturais de água - muitas vezes cheios de lodo e imundícies onde ocorreram alguns afogamentos. Soeiro Pereira Gomes foi um dos impulsionadores da construção de uma piscina concebida propositadamente para a população de Alhandra que ficou conhecida como a Charca da Hortinha. Foi também responsável pela criação de bibliotecas nas colectividades e pelo lançamento de cursos de alfabetização e a realização de palestras.Apesar da actividade cívica que desempenhou com empenho, Soeiro Pereira Gomes ficou na história como um dos principais escritores neo-realistas portugueses. “Esteiros” é considerada a sua obra-prima que já fez parte dos programas obrigatórios do ensino secundário em Portugal. O romance, dedicado aos “homens que nunca foram meninos”, acompanha as deambulações de um grupo de “meninos de rua” cuja condição social lhes impõe, em vez da escola, o trabalho numa rudimentar fábrica de tijolos à beira Tejo. Gineto, Sagui e Gaitinhas são os personagens principais de uma história que retrata a violência física do trabalho a que são, diariamente, sujeitas.Nos encontros intelectuais e político-culturais com outros jovens neo-realistas de Vila Franca de Xira, especialmente nos Passeios do Tejo a bordo do varino Liberdade, partilhavam-se ideias e textos, canções proibidas e promessas de transformação em acções militantes. Como membro do Partido Comunista, Soeiro Pereira Gomes assume maiores responsabilidades no Ribatejo, sendo impelido, depois das greves de 1944, a entrar na clandestinidade.Na condição de clandestino viveu em Pernes, concelho de Santarém, e integrou a comissão executiva do Movimento de Unidade Anti-Fascista (MUNAF). O escritor criou o “Ribatejo – Boletim Regional de Unidade Nacional Antifascista” onde escrevia e dirigia o periódico. Muitos dos seus documentos foram destruídos quando entrou na clandestinidade, uma época onde predominava o silêncio e a censura.O facto de viver clandestino no seu próprio país precipitou a sua morte prematura. Em 1947, numa noite de Inverno, o escritor caiu durante um passeio de bicicleta quando pressentiu que estava a ser perseguido. A ilegalidade em que vivia dificultou-lhe os tratamentos tendo morrido em Dezembro de 1949 vítima de tuberculose.(…) “A faina redobra de violência e o sol também. Reverbera no metal das pás e no corte das lamas; entontece. Porém, mais do que a faina e o sol, os olhos do Zé Vicente abrasam o esteiro todo. Sente-se o corpo suado dos valadores, que se curvam mais e mais, como que a pedir sombra e clemência. Mas, ali e em redor, só o corpo do patrão projecta mancha de sombra sobre a terra escaldante” (…). (excerto da obra “Esteiros”).Soeiro Pereira Gomes é recordado como um homem de causas, um militante dos direitos humanos e do associativismo que entrou na clandestinidade por lutar pela liberdade que não existia.O facto de viver clandestino no seu próprio país precipitou a sua morte prematura. Em 1947, numa noite de Inverno, o escritor caiu durante um passeio de bicicleta quando pressentiu que estava a ser perseguido. Escritor é considerado um símbolo da LiberdadeAdmiradores da obra literária e da actividade cívica e cultural de Soeiro Pereira Gomes no concelho de Vila Franca de Xira, Joaquim Cardoso Mendes, 81 anos, e Luís Ferreira, 74 anos, fizeram questão de estar presentes no dia da inauguração da exposição do escritor. Ambos concordam que Soeiro é o símbolo da liberdade que não existia na época em que o escritor viveu. “A história de “Esteiros” está contada como se fosse uma fantasia mas tudo o que está lá escrito é verdade. O meu irmão e os meus primos trabalharam naquela fábrica de cimento e eu ia todos os dias pela linha de comboio, a pé, levar-lhes o almoço. Tinha sete anos. Só não trabalhei lá também porque era demasiado novo”, recorda. Luís Ferreira lembra que, apesar de não ter tido necessidade de trabalhar na fábrica de Alhandra, brincava com muitos rapazes que ganhavam o seu dinheiro a fazer telhas e tijolos “atolados em lama até à cintura”. “Aquela era uma época de repressão e Soeiro Pereira Gomes teve a coragem de lutar e de desmascarar uma verdade evidente nesta região. A existência de uma escravatura onde os pobres tinham que se sujeitar a trabalhos muito pesados a troco de quase nada. Actualmente, coisas bem menores são consideradas escravatura”, refere, acrescentando que esta é uma homenagem tardia, mas justa.Presente na cerimónia de inauguração, a presidente da autarquia, Maria da Luz Rosinha, explicou que o espólio de Soeiro Pereira Gomes foi cedido ao museu do neo-realismo pelos irmãos do escritor. “O seu espólio constitui-se como um elemento disponível para a investigação de todos aqueles que se interessam por conhecer melhor o trabalho e o carácter de alguém tão importante para o panorama nacional da literatura”, concluiu.Museu aposta na Comunicação e MarketingFátima Roque é a nova responsável de Comunicação, Marketing e Protocolo do Museu do Neo-Realismo. Técnica Superior de Comunicação, Fátima Roque trabalha há cerca de duas décadas na Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. Os primeiros dezoito anos na divisão de Informação e Relações Públicas, tendo dedicado os últimos dois anos ao Museu Municipal do concelho. Recentemente surgiu a oportunidade de abraçar este novo desafio e Fátima Roque está muito entusiasmada com um projecto que considera aliciante. A Técnica Superior de Comunicação considera que o museu do Neo-Realismo tem desempenhado um bom trabalho, mas afirma que ainda existe muita coisa a fazer. “Existem muitas ideias que têm de ser articuladas com a direcção do Museu. Temos que encontrar formas de projectar o museu e trazer cá os nossos públicos, a população do concelho que precisa de perceber que pode reconhecer-se e encontrar factores e identitários neste espaço. Podemos fazer com que este museu seja um marco desta região e que Vila Franca de Xira ganhe uma marca identitária com o museu do Neo-Realismo”, disse.Uma inauguração ao nível da militância do autor de EsteirosSoeiro Pereira Gomes, o autor de Esteiros, teria gostado de saber que a inauguração da sua exposição no museu do neo-realismo teve condimentos a fazerem lembrar tempos de contestação e revolução.Eu conto para quem lá não esteve e gosta de estar actualizado.A inauguração estava marcada para as 17 horas. No museu, por volta dessa hora, já lá estavam os mesmos de sempre, velhos militantes comunistas que aproveitam algumas das iniciativas do museu para reviverem velhos tempos de luta contra a ditadura salazarista.Regra geral são pessoas na casa dos 80 anos. Gente ainda tesa e com a língua afiada para a crítica. Foi um desse homens que à entrada do museu, cerca de 50 minutos depois da hora marcada, entrou “a matar” dirigindo-se à presidente da câmara. Não ouvi o que lhe disseram mas não deve ter sido nada agradável. No início do discurso de boas-vindas e de apresentação da exposição Maria da Luz Rosinha começou exactamente por se explicar. E também não esteve com meias palavras. Antes de pedir desculpa pelo atraso lamentou que à entrada da porta em vez de a cumprimentarem a tivessem “tratado mal”.Desculpou-se depois com questões de falta de entendimento com o seu pessoal de gabinete mas cá atrás ninguém se deu por satisfeito. “Ouviu o discurso? Veja lá se ela se lembrou de dizer que o Soeiro Pereira Gomes era militante do Partido Comunista? Nem uma palavra. Só lhes interessa a parte que os ajuda a promover a política deles. Isso não é respeitar a memória de um homem e o seu legado”.Rosinha explicaria mais tarde, confrontada com o incidente, que já está habituada. “O concelho de Vila Franca de Xira tem esta vitalidade política e intelectual que não existe na grande maioria dos concelhos do país. Mas eu sei quem eles são e porque me criticam. Conheço o posicionamento político de todos eles e respeito-os. Mas não os levo a sério quando acham que são eles os donos do museu”.Meia hora antes da presidente chegar, António Redol, uma das pessoas mais importantes na relação entre o Poder e os homens que ainda são a memória viva daquilo que o museu representa, já ouvia alguns remoques: “Com este atraso isto é mesmo para desmobilizar não é verdade?”. “Podemos ir embora que a exposição não perde nada com a nossa ausência?”. “Calma”, aconselhava ele. “A presidente nunca se atrasa. Essa é uma das suas qualidades. Vocês sabem isso porque é que estão a fazer oposição”, dizia, com um sorriso condescendente embora do outro lado os interlocutores mostrassem cara de poucos amigos.Augusto da Silva Ribeiro, de 92 anos, lúcido e teso que nem um personagem dos Esteiros, ajudou a fazer a espera à presidente da Câmara e depois foi um dos que visitou a exposição com um interesse que vale a pena ir conferir a Vila Franca de Xira. JAE
Memórias do autor dos “homens que nunca foram meninos” no museu

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