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“Não gosto da política feita nos bastidores”

“Não gosto da política feita nos bastidores”

Fernanda Asseiceira, presidente da Câmara de Alcanena, cultiva a frontalidade e a transparência

À segunda tentativa, Fernanda Asseiceira conseguiu recuperar a Câmara de Alcanena para o PS, depois de conquistar o partido a nível local. Diz que o partido tem sabido aproveitar a sua disponibilidade e que não é uma yes woman. “Não me peçam para dizer nada com que não concorde nem fazer nada que não defenda”, afirma.

Teve algumas surpresas quando assumiu a gestão da Câmara de Alcanena?Tive e estou a ter diariamente. As surpresas são sobretudo no âmbito económico-financeiro. Sou confrontada diariamente com facturas que chegam, com fornecedores que pedem para ser recebidos por causa dos pagamentos em atraso.Já esperava essa situação?Há uma situação que não é compreensível. Porque a autarquia viu autorizado um empréstimo de quase três milhões de euros no âmbito do PREDE – Plano de Regularização Extraordinário das Dívidas do Estado. E estamos ao mesmo nível que estávamos em Junho, quando foi autorizado o empréstimo. Não serviu para baixar o passivo que a câmara tinha perante os seus fornecedores. Temos dívidas realmente muito significativas.Tem ideia do montante?Pedi já esse balanço, que me foi feito à data de 17 de Novembro, mas acredito que surjam mais. Só dívidas a fornecedores são valores na ordem dos 6 milhões de euros.Isso é muito para uma câmara como a de Alcanena?É muito, sobretudo quando as pessoas não estão em condições de estar muito tempo à espera de receber. É desagradável chegar a um lugar destes e, em vez de poder perspectivar projectos de futuro, ter aqui estas amarras que vão seguramente limitar a nossa intervenção. Vai honrar esses compromissos?Sim. Já solicitei vários dados à contabilidade para saber de que entidades e fornecedores estamos a falar e os montantes relativamente a cada um. Pedi também um levantamento de pequenas dívidas abaixo dos 100 euros e se tiver condições irei já executar esses pagamentos. A minha dificuldade é o tempo para fazer tanta coisa. Porque implica um contacto com cada um dos fornecedores para criarmos um plano de pagamentos. A câmara está cá para honrar os compromissos, mesmo de coisas com as quais não concordo. Houve realmente uma má gestão do dinheiro público. Tivemos casos de adjudicações directas no dia 9 de Outubro, dois dias antes das eleições. Foi candidata há quatro anos à Câmara de Alcanena, depois de ter sido candidata a deputada nas legislativas realizadas meses antes. Agora voltou a ser candidata à autarquia. É sem dúvida uma pessoa a quem o partido não tem negado oportunidades.Não colocaria a questão assim. Diria quase que o Partido Socialista é que devia estar agradecido por eu manifestar esta enorme disponibilidade em abraçar estes projectos. Em 2005 fui candidata a deputada, apresentei-me a votação no partido, não me ofereceram nada. E quando chegou à altura de se escolher os candidatos às câmaras criou-se aqui um vazio e eu fui confrontada pelo próprio partido para ultrapassar essa situação. Tinha acabado de chegar à Assembleia da República e não estava nos meus horizontes ser candidata à câmara.Foi o PS que a empurrou…Eu não diria que me empurrou. Isto faz parte de processos de conversação. Entendeu-se que na altura seria a pessoa que reunia condições para ser candidata. Fui e acabei por manter aqui o lugar de vereadora. Só não correu melhor porque não houve muito tempo para preparar a candidatura. A mudança de candidato do movimento de independentes que geria a câmara pode ter ajudado agora à sua vitória.Pode ter pesado, porque as candidaturas autárquicas são também muito personalizadas.Como é que vê esses movimentos independentes, como o de Alcanena, que são muitas vezes compostos por pessoas ressabiadas com os respectivos partidos.Devia haver coragem em repensar estas candidaturas e a legislação que as suporta. Porque isto de independente não tem nada. Tenho sido muito crítica em relação a isso, por ter sentido na pele uma candidatura independente que disso nada tinha. Trata-se muitas vezes de pessoas que não foram escolhidas pelos seus partidos políticos e protagonizam candidaturas contra o seu próprio partido. “Gostaria de regressar à Assembleia da República como deputada da oposição”O que a atraiu no mundo da política, sabendo-se que os políticos não gozam de grande popularidade junto da opinião pública?Não concordo com muitas coisas que se fazem na política. Da política feita nos bastidores. Gosto de fazer as coisas com frontalidade e com transparência. De assumir as coisas falando com as pessoas. Algumas das divergências que vou tendo no mundo da política são sobretudo por isso. Por discordâncias na forma de actuação. Não me peçam para dizer nada com que não concorde nem fazer nada que não defenda. Para fazer as coisas tenho que acreditar nelas.Teve uma passagem discreta pela Assembleia da República. Concorda com essa leitura?Não concordo. Tratou-se de um momento de maioria absoluta, em que os protagonistas são muitos e o espaço de intervenção está de algum modo limitado à actuação do próprio Governo. Costumo dizer que gostaria de regressar como deputada da oposição. Seria muito mais interessante.É professora de profissão. Participou em alguma manifestação de docentes nos últimos anos?Não. Aliás, até era sindicalizada e deixei de ser.Isso sugere que apoia a posição do Governo do seu partido. É uma militante disciplinada?Sou uma pessoa coerente e havia um programa de Governo com que, nos princípios gerais, todos concordamos. E os professores também em termos de objectivos. Mas sentimos que havia dificuldade na implementação das situações. Houve muita mudança em pouco tempo e sem tempo para as preparar.Houve alguma precipitação.Não diria precipitação, mas houve a implementação de um calendário apertado e um programa de alterações muito extenso. Não houve esse equilíbrio.Depois da passagem pelo Parlamento, o escrutínio da sua actividade vai ser maior agora. Muito maior. Quando me candidatei estava convicta do imenso desafio que ia enfrentar. Ao ser confrontada com as situações todos os dias apercebemo-nos que é mesmo uma imensa responsabilidade. Aceita bem a crítica?Aceito se for devidamente fundamentada, se for construtiva. Incomoda-a que os problemas ambientais de Alcanena só agora comecem a ser resolvidos, após tantos anos de problemas?Incomoda. Fiquei contente por Humberto Rosa se manter como secretário de Estado do Ambiente. Porque ele acompanhou o protocolo feito em Junho para acabar com os problemas ambientais. Ninguém vai aceitar que ao fim destes anos todos, feito mais este investimento, as coisas não fiquem a funcionar bem.Não é uma vergonha para a classe política que ainda subsistam problemas ambientais como esses?Sempre me custou acreditar como se foi construir uma ETAR naquele sítio e como se levou tantos anos a falar dos problemas ambientais sem se resolverem. Como presidente de câmara, se estivesse aqui há tantos anos como estiveram antecessores meus, isso para mim seria uma vergonha.Alcanena viveu em grande parte, e durante muitos anos, da indústria de curtumes. Foi um erro?Isso sim é uma responsabilidade política. Uma vergonha política. Não é por se ter apostado na indústria de curtumes, porque até continuo a acreditar nela. E felizmente as empresas estão a reestruturar-se, têm vindo a inovar do ponto de vista da tecnologia, têm vindo a internacionalizar-se. Isso é muito bom. É preciso que os industriais dos curtumes e dos têxteis em Minde tenham essa perspectiva empresarial diferente.O que faltou então?Há muitos anos já se referenciava o nó da A1 com a A23 e que o concelho de Alcanena devia direccionar o seu desenvolvimento por aí. Estamos em 2009 e Alcanena não tem nada feito no nó da A1 com a A23. A logística é um factor fundamental de desenvolvimento?A logística e não só. Gostaria de ter condições financeiras. Temos de avançar com esse projecto intermunicipal com Torres Novas, procurar sinergias e ver se conseguimos dinamizar aquela área com parcerias público-privadas.“Não passo muito tempo ao espelho”Hoje (18 de Novembro) Portugal joga um desafio decisivo para a sua presença no mundial de futebol da África do Sul. Vai acompanhar o jogo da Bósnia?(risos) Não me façam essas perguntas, que eu nem sabia que havia jogo...Nunca foi ver um jogo do Monsanto, clube do seu concelho que está na 2ª divisão nacional?Isso fui. Ainda não tinha tomado posse, fui convidada e fui ver o Monsanto em Torres Novas a jogar com o Benfica.E antes disso?Também já tinha ido ver jogos quando fui delegada do Inatel. Vi muitos jogos nessa altura. O campeonato do Inatel tem muitas equipas.Tem algum clube predilecto, apesar de não gostar de futebol?Não. Ainda sabe o que é ter tempos livres?Não. E por vezes pergunto-me: será que os meus tempos livres acabaram?Do que sente mais falta?Gostava muito de ler e o cansaço, por vezes, quando se chega a casa é tanto, depois de já ter lido tanta coisa, que aquela literatura que nos era tão agradável acaba por já não ter espaço. Que livro tem na mesinha de cabeceira?É o último do Miguel Sousa Tavares. Está lá há uns três meses e já nem me lembro bem do título.Um filme que a tenha marcado?Não sou pessoa de ficar marcada por um livre ou por um filme. Até nisso sou completamente liberta. Gosto muito de ir ao cinema e quando estava em Lisboa ia muita vez. Lembro-me de um filme de que não gostei realmente, chamado “A Ponte”. Vi-o numa sala onde não estava mais ninguém. Era um documentário sobre situações de suicídio nas pontes e vim-me embora a meio. Uma música que associe a um momento de felicidade?“Moment of Glory”, dos Scorpions. Foi a música que escolhi para a sessão de apresentação da minha candidatura e que voltou a ser tocada no encerramento. É uma mulher vaidosa? Preocupa-se com a aparência?Pode parecer que sim, mas não. Sou simples. Claro que gosto de andar minimamente apresentável e arranjada. Não gosto que me dêem opiniões sobre o que vestir. Gosto de ser eu a escolher as roupas, os sapatos. Estão-me sempre a pedir para mudar de penteado, mas sou muito conservadora.Passa muito tempo nas lojas de roupas e calçado?Não. Nem ao espelho. Quando gosto, compro. Mas agora até deixei de ter tempo para fazer compras. Pelo menos tem uma vantagem, que é a economia. As divergências com Carlos CunhaFernanda Asseiceira chegou à política pela mão de Carlos Cunha no final da década de 90. Foi pela mão do ex-presidente da Câmara de Alcanena, então governador civil de Santarém e líder distrital do PS, que a professora, já militante socialista, chegou a delegada distrital do Inatel. Em 2001 fez parte da lista de Carlos Cunha para a Câmara de Alcanena, derrotada pelo movimento independente criado por Luís Azevedo, ex-número dois de Cunha na autarquia. Essa cisão no PS de Alcanena redundou no fim da carreira política de Carlos Cunha. Fernanda Asseiceira sucedeu-lhe como rosto dos socialistas em Alcanena. E recuperou o município para o PS à segunda tentativa.Sente-se uma herdeira política de Carlos Cunha?Não. De maneira nenhuma. Mas teve a responsabilidade de lhe suceder como candidata à presidência da câmara pelo PS, após o conturbado processo de 2001?Criou-se aqui um hiato de oito anos que foi muito mau para o concelho de Alcanena. Recuámos em tudo. O engenheiro Carlos Cunha está afastado dos órgãos partidários desde 2001. Este projecto começou a ser desenvolvido por outras pessoas e eu, na realidade, assumi a liderança. É um projecto colectivo que acabou por permitir a reorganização do PS e em 2009 voltar a ganhar eleições.O engenheiro Carlos Cunha não participou nesse projecto?Não. E já lhe deu os parabéns por ter sido eleita?Não. Não foi ele que a ajudou a entrar no mundo da política?Sou professora de profissão, comecei a envolver-me aqui em Alcanena em projectos de âmbito comunitário. Depois surgiu o convite, isso sim, por parte do engenheiro Carlos Cunha, que era então governador civil, para ser delegada do Inatel. Já era militante do PS nessa altura?Já. Em 2001 acabei por integrar a lista às eleições autárquicas. Foi uma má altura para aceitar integrar uma lista. Foi muito duro.O que ficou a manchar as vossas relações, para que haja essa frieza, essa distância?Não é frieza, são formas de estar ou de encarar a política. As divergências não são de natureza pessoal, sim de natureza política. Em 2005, na altura em que fui candidata, acentuaram-se as divergências de carácter político e de orientação política no concelho. Assumi uma posição muito determinada.E conquistou a concelhia do PS.Exactamente. O engenheiro Carlos Cunha fazia parte da lista que se opôs à minha e foi mais outro momento de clivagem. Foi o último momento de clivagem. A partir daí acabei por ser vista como a candidata natural à câmara. E veio mostrar que afinal eu estava no rumo certo. Uma mulher que faz da autonomia uma forma de estar na vidaFernanda Asseiceira, 48 anos, nasceu na Chamusca. Com apenas três anos foi viver para Alcanena com os pais. Sente-se como se fosse de Alcanena, embora a terra natal ainda lhe diga alguma coisa. Até porque são territórios muito diferentes. “Quando vou à Chamusca gosto muito daquela zona da lezíria junto ao Tejo. Sinto sempre alguma nostalgia”.Professora do segundo ciclo, é solteira e não tem filhos. “Isso permite que tenha uma maior disponibilidade para estes projectos. Há constrangimentos quando as pessoas têm de fazer uma conciliação familiar. Não podem estar, se calhar, a trabalhar até à meia-noite ou esquecerem-se de almoçar ou jantar”, diz quem considera que “essa autonomia também é uma forma de estar na vida”. “Assumo que a minha situação pessoal e familiar permite uma enorme disponibilidade para me dedicar aos projectos que abraço, mas também não é menos verdade que o facto de me entregar tanto aos projectos que abraço também se tem reflectido na minha vida pessoal e familiar”. E, feitas as contas a tudo isso, Fernanda Asseiceira resume: “Sinto-me bem como estou e sinto-me bem com o que faço”.
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