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“O PS acumulou erros e perdeu bem a Câmara de Santarém”

“O PS acumulou erros e perdeu bem a Câmara de Santarém”

Rui Madeira, um homem de esquerda nascido em Santarém que é o actual director do Theatro Circo em Braga

Trinta e seis anos após ter saído da aldeia da Romeira, Rui Madeira é hoje o director do Theatro Circo de Braga, cidade onde concedeu a entrevista a O MIRANTE, depois de em Novembro ter recebido em Santarém o Prémio de Teatro Santareno. Regressa com regularidade à cidade que o viu nascer. Refere que Santarém “está a esquecer alguns marcos culturais”, diz que o PS perdeu bem as eleições no concelho e considera os políticos “cada vez mais incultos”. Jorge Afonso da Silva

Que relação mantém com Santarém?Desapaixonada. Nasci lá mas vivo bem fora de Santarém, onde mantenho grandes amigos. Um morreu recentemente: o professor Albino Maria. Homem íntegro, fantástico que contribuiu imenso para aquela região e deu muito a Santarém.Que visão tem da cidade?Está por resolver um paradigma que depois do 25 de Abril ficou por solucionar. A cidade perdeu matriz e identidade. Pela proximidade de Lisboa e pela saída de muitas pessoas. Hoje vive-se esse drama. É uma cidade deserta à noite. Gostava que Santarém tivesse uma outra dinâmica. Mas este é um olhar de fora. A cidade precisa de um projecto virado para dentro, que a afirme. É um problema que ultrapassa a questão político-partidária. É mais estratégico e complexo. De futuro e não do momento.Como assim?A questão terá de passar por rever o que é que se quer da cidade daqui a 20 anos e como é que se a projecta para daqui a duas décadas. Quais são as duas ou três linhas estratégicas. Temos de parar e pensar.Faltam essas linhas estratégicas?Não as vejo. Mas também não as há para o país. E ninguém questiona isso. É um problema do estado a que isto chegou. Os políticos são responsáveis mas os cidadãos também. Não há uma cultura de cidadania em Portugal. Defendo que o país tem de crescer a partir das cidades médias. Mas o que me aflige hoje em Santarém é às sete da tarde ver a cidade deserta. Sinto-me mal. Mas sei que é um problema que não se pode resolver no imediato. Chateia-me também ver a Ribeira de Santarém a cair. Digo a brincar que sou da cidade que tem o maior centro histórico português. Todo o núcleo central da cidade é centro histórico porque ao longo dos anos nada foi feito. Há ruas em Santarém que são assim desde sempre. A cidade parou no tempo.Não me esqueço de um debate sobre a regionalização em que estava o Noras (ex-presidente da Câmara de Santarém) e a Isabel Damasceno. A presidente da Câmara de Leiria passou o programa todo a dizer que as pessoas de Santarém não faziam nada. E a passividade com que o Noras, que é meu amigo, aceitou aquilo foi de uma pessoa derrotada. Essa ideia irrita-me e não gosto que digam mal da minha terra. Gostava que Santarém reganhasse uma ideia de cidade porque tem condições.Esse caminho está a ser trilhado?Antes do 25 de Abril, Santarém tinha uma vida cultural, cívica e social maior do que a que tem hoje. Mas Braga, antes da revolução, também tinha uma outra identidade cultural muito mais marcada pelo regime. Hoje tem uma outra identidade cultural porque se renovou. É verdade que tem condições e potencialidades diferentes. Mas também está mais próxima do Porto do que Santarém de Lisboa. E, hoje, Braga vive por si e não por causa do Porto. Há muita gente do Porto a trabalhar em Braga e vice-versa. Só o Centro de Nanotecnologia que aqui está vai trazer 400 cientistas de todo o Mundo. Há mais dinamismo em Braga? Braga tem potencial que Santarém não tem. Neste momento há aproximadamente 30 mil estudantes universitários em Braga. Tem uma faculdade de medicina. A Universidade do Minho tem dois pólos. No Minho habitam cerca de um milhão de pessoas. Existem várias cidades fortes. Mas Braga também tem problemas. São condições diferentes da zona de Santarém.Diferentes como?Vemos crescer Almeirim, Alpiarça ou Cartaxo e Santarém cresce de outra maneira. Esse é o problema destas cidades. São um dormitório. A cidade está muito presa ao sector terciário. Têm sido feitos esforços para ter zonas industriais mas a situação económica não tem permitido. Quando vou para a minha aldeia (Romeira) e passo pela zona da Mafarra, percebo que estão a querer desenvolver. Acho bem. Deve-se pensar numa cidade para o futuro. Sou um homem de esquerda e independente. Já militei e fui responsável político. O PS perdeu bem a Câmara de Santarém. Acumulou erros sucessivos e desprezou esta ideia de perceber a cidade.O actual executivo está a perceber melhor a cidade?Não tenho condições para responder. Para isso é preciso estar lá. Daqui a uns tempos posso dar uma opinião. Mas estávamos a falar de Braga e Santarém. Quando vou a Santarém brinco com os meus amigos porque vejo que as empresas de obras que estão a trabalhar lá, são de Braga. A ABB, que está a fazer o trabalho no centro de Santarém, e a DST são empresas de amigos meus. Só posso ficar contente. E depois são empresas que compraram camarotes no Theatro Circo. Tenho esse prazer quando chego a Santarém. Mas também teria prazer de ver empresas de Santarém a trabalhar em Braga.Mas isso não acontece…Pois não. Mas digo-lhe que o presidente da Associação Industrial do Minho é de Santarém. O anterior reitor da Universidade do Minho tem uma forte ligação a Santarém e a esposa é de lá. Alguns dos bons advogados de Braga e um director de um banco são de Santarém. Isso é interessante…Podem-se fazer várias leituras. Uma é que as pessoas com potencial tiveram de sair de Santarém.Ora aí está. Era isso que lhe estava a dizer há pouco. Uma cidade cresce se tiver poder de auto-actividade. Precisa de ter massa critica. Essa tem que ser uma preocupação estratégica da cidade: como se traz massa crítica para Santarém? Todas as cidades precisam e esse é um problema actual.Acha que as gentes de Santarém estão adormecidas?Não diria adormecidas. Garrett dizia que o teatro é o meio artístico fundamental para fazer despertar os cidadãos, mas esse despertar não pode existir quando estão a dormir. Se as pessoas querem continuar a dormir como é que podem ser despertadas? É difícil sair de um estado letárgico. Tem que se abanar mas às vezes não é fácil. De “palhaço” a condecorado pela cidade e respeitado na cena teatralRui Madeira nasceu a 15 de Fevereiro de 1955 na Romeira – uma aldeia do concelho de Santarém – no seio de uma família humilde. O pai era agricultor e a mãe dona de casa. Foi num anexo, onde havia uma pequena sala de espectáculos com um palco, situado ao lado do Teatro Sá da Bandeira, que começou a dar os primeiros passos na representação teatral, com cerca de onze anos. Dessa altura recorda o convívio com pessoas ligadas ao movimento antifascista. Dos bancos da escola lembra os professores Mariana Viegas e José Fraga da Silva. Frequentou a livraria Apolo e a biblioteca itinerante número 16 da Fundação Gulbenkian. Fez parte de várias equipas de atletismo de Santarém e correu provas de fundo, corta-mato, 10 e 5 mil metros. Com 19 anos deixou a sua aldeia e foi para Évora atrás do sonho de ser actor. Precisamente em 1974, ano da revolução. Mas deu um desgosto à família. “O meu pai queria que fosse agente técnico ou engenheiro civil. Andou uns dez anos a dizer aos amigos que tinha um palhaço”, revela com um sorriso Rui Madeira.Em 1980 rumou ao porto e juntamente com a actriz Ana Bustorff (sua primeira mulher, com quem teve o único filho) e outras pessoas fundou a Companhia Teatral Cena. Em 1984 transferiram-se para Braga e assumiram o nome de Companhia Teatral de Braga (CTB), residente no Theatro Circo (TC). A mais emblemática casa de espectáculos da cidade e uma das melhores do país, por onde já passaram os grandes nomes do teatro.Passados 30 anos, Rui Madeira revê-se no percurso trilhado. Hoje é o director da CTB, responsável pelo TC, encenador e actor quando o tempo permite.É professor na Universidade Católica e presidente do conselho de administração da fundação Bracara Augusta, com objectivos culturais. Em Novembro, Rui Madeira viu o seu trabalho desenvolvido ao longo de várias décadas reconhecido pela cidade que o viu nascer. Recebeu o Prémio de Teatro Santareno Especial. Um momento “simpático e de memória” para Rui Madeira, que tem a consciência de que é “uma pessoa reconhecida no meio teatral” nacional. Espera um dia regressar às origens e reconstruir uma casa que tem na aldeia da Romeira. Nessa altura, diz que estará disponível para ajudar Santarém se puder. Um dos objectivos futuros é também o regresso à televisão e ao cinema. Até lá vai-se dedicando à colecção de vinhos que tem na aldeia e à cozinha, uma vez que se considera “um excelente cozinheiro”.“Não devemos ter medo da nossa cultura nem da nossa identidade”A cidade tem sabido aproveitar os seus ícones culturais?No caso do Bernardo Santareno e a criação do prémio com o seu nome concordo com o que se está a fazer, mas é pouco. A câmara precisa de ir mais longe. Deve criar condições para que em cada ano se faça um texto de Bernardo Santareno, que não está a ter no plano nacional a relevância que tem no panorama cultural. A questão é que as maiores peças do Santareno têm 12, 13, 14 personagens. E as companhias de teatro não têm elencos nem dinheiro para fazerem esses textos. Como se resolve isso?A Câmara de Santarém, neste caso o Instituto Teatro Bernardo Santareno, cria condições e propõe a alguns criadores a produção de um espectáculo, que pode ser em regime de co-produção com o próprio instituto. Ou então abre um concurso para, por exemplo, duas companhias se juntarem em regime de co-produção e fazerem um texto do Bernardo Santareno. Este é o caminho que defendo. Pode-se ainda usar a influência do ponto de vista político ou discutir com os teatros nacionais públicos a inclusão de Santareno na sua programação. É outro caminho. Falta esse passo da criação da produção dos textos do Bernardo Santareno. Mas há outros caminhos a percorrer.Quais?As questões da cultura ultrapassam os problemas da divisão político-partidária. Temos de criar um discurso de cidade para as questões culturais. Isso implica duas coisas: estarmos muito bem explicados sobre o que queremos e por outro lado explicar às pessoas o que defendemos. Isso provoca confronto mas também conhecimento da cidade sobre isso. Depois, ou se concorda ou se discorda. Não podemos é andar em querelas partidárias. Estamos sempre a dizer mal da própria rua. Somos a capital de tudo. Da alheira, do barroco ou do móvel. Depois vai-se ver e não existe nada. Não pode ser assim.O que pensa do Teatro Sá da Bandeira?Defendi e ainda defendo que se devia dar a conhecer o TSB em Lisboa enquanto equipamento sobretudo virado para os projectos pontuais, aproveitando os apoios que o Ministério da Cultura concede anualmente para esse efeito. Muitos projectos pontuais não têm espaço onde possam ser desenvolvidos. Santarém podia aproveitar a proximidade de Lisboa e propor, em cada ano, a realização no TSB de dois ou três projectos pontuais. Com uma condição: os criadores desenvolvem o seu projecto no TSB mas em contrapartida garantem um número de espectáculos em Santarém. Isso ajudava na programação regular do teatro, criava condições para que se desenvolvesse ali um centro de produção artística e estávamos a trazer pessoas para a cidade. O estereótipo dos toiros e cavalos é um factor inibidor da criatividade?É positivo para a dinamização cultural da cidade. Os cavalos e os toiros são ícones da cidade e podem ser desenvolvidos. Alimento há uma série de anos a possibilidade de fazer um espectáculo que inclua o fado, o flamengo e o fandango. Irei fazer de certeza. Para esse projecto preciso de um elemento que é o Custódio Castelo. Um guitarrista ímpar que vive em Almeirim. Uma pessoa fantástica. Não devemos ter medo da nossa cultura nem da nossa identidade, das adegas ou de cantar o fado. Porque não retomarmos e afirmarmos isso como uma marca? Não vejo mal nenhum nisso.O que pensa de Santarém culturalmente?Um concelho onde Garrett teve uma grande influência. Ruy Belo, um dos grandes poetas do século XX, nasceu e viveu em São João de Ribeira. Bernardo Santareno é da aldeia do Espinheiro. Alexandre Herculano é meu vizinho da freguesia ao lado. Um concelho que tem pessoas ligadas profundamente à democracia, casos de Salgueiro Maia ou José Niza. Políticos com relevância como Hermínio Martinho. E tantos outros. Não posso acreditar que Santarém seja irrelevante do ponto de vista cultural. Mas a cidade está a esquecer alguns dos seus marcos. Santarém também é, historicamente, riquíssima. Há uma base que sustenta a importância da cidade culturalmente. Tem é que se puxar por isso.Está a esquecer as suas origens culturais?Penso que sim. Pelo menos vamos comemorar a República este ano. Se dentro desta discussão se chegar à conclusão que os miúdos das escolas e as pessoas não sabem quem é o José Relvas ou o Sá da Bandeira, talvez se deva fazer uma programação temática sobre estas figuras. Mas Santarém não é um deserto em termos culturais.“Os políticos são cada vez mais incultos”Rui Madeira tem uma opinião muito crítica sobre as políticas que têm vindo a ser seguidas pelos últimos governos e ministros da Cultura. No seu entender tem faltado uma “clara definição de política de criação artística e de cultura”. “A única estratégia é o de dividir os tostões pelas aldeias em função dos interesses políticos”, acusa.O director do Theatro Circo defende uma política e uma estratégia baseada na contratualização de objectivos e não uma “atitude de desmazelo do Estado” quando atribui um financiamento sem controlo, provocando o esbanjamento de dinheiro.Sobre os políticos tem uma opinião frontal: “Estão cada vez menos informados culturalmente e isso é um desastre nacional. São cada vez mais incultos”, afirma Rui Madeira que defende “um choque cultural para o país”.Sobre a questão da cultura viver de subsídios, Rui Madeira acusa os fazedores de opiniões de criarem essa ideia. Casos de Pacheco Pereira e António Barreto. “Se olharmos para eles são os primeiros subsídio-dependentes. Parte do dinheiro que ganharam ao longo da vida veio do mesmo bolo orçamental que vai para a cultura. Dizem com prazer que não vão ao teatro, acham-se superiores quando reflectem nos seus gabinetes mas não são sérios quando falam”, refere.Rui Madeira defende os financiamentos, diz que essa é uma discussão do vazio e esclarece. “Os financiamentos dados à cultura são financiamentos directos ao público porque senão o custo do bilhete era proibitivo. Não é aos agentes”, salienta.
“O PS acumulou erros e perdeu bem a Câmara de Santarém”

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